Saturday, July 14, 2012

Ser doutor antes de o ser!


“Não tenho nada para comentar, porque tanto quanto sei não há nenhuma ilicitude nem nenhuma irregularidade que tenha sido apontada. Para mim é um não assunto”

Pedro Passos Coelho

Na semana em pensávamos abstrair-nos do “pântano” onde o país se encontra mergulhado, retomando assim a terapia positiva da cultura, tomada à letra pelas palavras de Rousseau quando um dia afirmou que “moldam-se as plantas através da cultura, os homens através da educação”, eis que somos confrontados com mais uma mirabolante reviravolta no estado psórico do país. Não é que haja da nossa parte preocupação no que concerne à obtenção dos tão ansiados “canudos”, mas ao nos centralizarmos na arrojada petulância com que muitos lutam por esse “disfarce vinculativo”, por forma a pertencerem ao “clube dos doutores e engenheiros” – e até fazem questão de prefixar os cheques dos bancos, mesmo antes de acabarem os respectivos cursos –, pensamos que algo de seriamente grave se passa na realização da natureza humana, contrariando assim a confrontação de uma pluralidade de valores e de escolhas surgida pelo enriquecimento da cultura universal. Segundo a nossa modesta opinião, estudar para nos valorizarmos intelectualmente deveria ser o princípio norteador dessa realização da natureza humana. O tão ansiado “canudo” deveria funcionar apenas como o reconhecimento do percurso de evolução cultural, longe das normas físicas colectivas, que apenas são ostentadoras de vaidades e de interesses mesquinhos. O alcance das licenciaturas não deveria “ser pelo parecer”, mas pela “razão” do enriquecimento intelectual. Este tipo de gente – “ignorante” e quiçá insignificante, porque mesquinha – que contraria o preceito do enriquecimento intelectual, está longe de perceber o princípio preconizado por Nicolau de Cusa na “Douta Ignorância”: Nenhum outro saber mais perfeito pode advir ao homem, mesmo ao mais estudioso, do que descobrir-se sumamente douto na sua ignorância, que lhe é própria, e será tanto mais douto quanto mais ignorante se souber. É só por isso – por termos também a noção da “existência” como precedente à “essência” – que resolvemos dar alguma importância à licenciatura de Miguel Relvas, como, em tempos (2007), demos à de José Sócrates, apesar de o sabermos possuidor de um bacharelato de quatro anos: “Infelizmente, enquanto se mantiver o desequilíbrio sacrificial na obtenção das licenciaturas, sendo que algumas delas são obtidas de forma desonesta, continuaremos a mastigar teoremas desajustados às necessidades de percurso, continuaremos a vender gato por lebre aos próprios estudantes. E por este andar, de que valerão as certificações, os comportamentos éticos na vida académica, a aquisição de competências para a aprendizagem, se tudo está inquinado logo à nascença?” – interrogávamos, escrevendo, na altura.
         Agora, passados cinco anos, eis que um ministro, assaz crítico de José Sócrates e da sua licenciatura, de seu nome completo Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas (vulgo Miguel Relvas), de acordo com o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 45.º do Decreto-Lei n.º 74/2006 de 24 de Março – Regime jurídico de graus e diplomas – (alterado pelo Decreto-Lei n.º 107/2008, de 25 de Junho), consegue obter a licenciatura de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Lusófona, com a modesta média de 11 valores, depois de ter sido atestado que o seu currículo governativo, político e profissional equivalia a 32 disciplinas do referido curso. Dos três anos previsíveis para a referida licenciatura (termos do Processo de Bolonha), com quatro exames acaba por a conseguir apenas num ano lectivo (2006/2007) e ainda, em 2010/2011, “vemo-lo” a leccionar cadeiras de Comunicação Pública e Política e de Marketing Político, como professor convidado, nos cursos de Comunicação Empresarial e Gestão de Marketing, no Instituto Superior de Comunicação Empresarial, em Lisboa. Para trás ficaria o “lapso” – quantos mais não irão surgir – de, em 1985, quando eleito pela primeira vez deputado para a Assembleia da República, ter entregado no Parlamento um registo biográfico seu onde mencionava que era estudante universitário do 2.º ano de Direito, quando na verdade apenas tinha feito uma cadeira (Ciência Política e Direito Constitucional) do 1.º ano, com a nota final de 10. É evidente que nada temos a ver – nem é nossa preocupação – com a forma como este “ilustre ministro” tirou a sua licenciatura, nem sequer pomos em causa a legalidade da sua obtenção, mas deixamo-nos de conter nessa possível irrelevância quando ouvimos o presidente da associação de estabelecimentos de ensino privado dizer que a “lei é um bocado coxa”, dado que os cursos sejam encurtados, mas que fazer uma licenciatura num ano “não é de todo vulgar”. Por incrível que pareça, e não será por acaso, na página do Governo, este nosso “génio estudante” é o único ministro que omite o seu percurso académico (ressalvamos este nosso reparo se à saída desta crónica acrescentarem ao seu “curriculum vitae” a tão propalada licenciatura). E ficamo-nos por aqui em considerações sobre o que a imprensa nacional tem especulado (admitindo, tal como aconteceu com José Sócrates, alguma “cabala” contra o “braço forte” de Pedro Passos Coelho, de forma a fragilizar o Governo), sem que antes plasmemos as suas próprias palavras, a propósito de todo este imbróglio: Tendo iniciado a minha actividade política e profissional ainda muito jovem, numa altura em que a política mobilizava milhares de cidadãos na primeira década após o restabelecimento da democracia em Portugal, essa intensa participação cívica em que me empenhei tornou-se, à época, incompatível com as obrigações académicas, tal como sucedeu com muitos outros jovens dos mais diversos quadrantes partidários. Apenas um facto curioso nos apraz aqui registar, já que, em Janeiro de 2004, ainda Miguel Relvas não era licenciado, foi colocada uma placa em Lagoa (Algarve) com os seguintes dizeres: «CÂMARA MUNICIPAL DE LAGOA / (ALGARVE) / INAUGURADO A 16 DE JANEIRO DE 2004 / POR SUA EXCELÊNCIA / O SECRETÁRIO DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO LOCAL / Dr. Miguel Relvas / SENDO PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL / Dr. José Inácio Eduardo»; ou então, aqui bem perto de nós, mais concretamente em Antas (S. Paio), Esposende, no ano anterior (2003), outra placa seria descerrada: «Foi esta Sede da Junta de Freguesia / inaugurada por Sua Excelência o / Secretário de Estado da Administração Local, / Dr. Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas / sendo Presidente da Câmara Municipal, / Fernando João Couto e Cepa, / e Presidente da Junta de Freguesia, / Vitor Manuel da Silva Faria / Antas, 04 de Outubro de 2003». Estávamos perante um licenciado que já o era antes de o ser!


Apesar de sermos desta geração similar à “da participação cívica de Relvas” – dezassete anos bem decalcados e vividos (onze anos de africanidade) ao tempo da revolução dos cravos, com “jotas”, movimentos de trabalhadores, participações cívicas/culturais e “deambulações” autárquicas à mistura – e de, presentemente, ostentarmos um currículo profissional de trinta e nove anos, nunca chegamos a embarcar em facilitismos, porque sempre achamos que o conhecimento deve ter por objectivo o pensamento humano e a relação deste com os seus objectos, e não por abjecto “parecer sem o ser”. Infelizmente, o “clube dos doutores e engenheiros” pela aparência, continua a ser a única saída para aqueles que estão vocacionados, única e exclusivamente, para o “ser aparente”, remetendo para um plano secundário o conhecimento, enquanto actividade pela qual o homem toma consciência dos dados da experiência e procura compreendê-los ou explicá-los. Deveriam ter em conta que o conhecimento é sempre “em si mesmo” uma actividade teórica e desinteressada, isto é, satisfaz um puro desejo de saber, sem se preocupar com a sua utilidade prática. Só o conhecimento “desinteressado” permite (empiricamente) uma acção eficaz. E isto parece que os nossos políticos não entendem ou procuram não entender. Daí, porque mal formados intelectualmente, a mediocridade de alguns dos governantes, deputados e dirigentes partidários. Tal como podemos ler em “espectivas.wordpress.com” (O. Braga), o qual subscrevemos inteiramente, “é tempo de acabarmos com a porcaria das doutorices na política. Um político vale pela sua capacidade de iniciativa, pelas suas ideias, pela sua mundividência e pela sua capacidade de mobilização de vontades — e não é um alvará de inteligente que fará dele mais inteligente ou mais esperto do que ele realmente é: o alvará de inteligente pode fazer dele um espertalhão, como acontece na maioria dos casos”.
Face aos decorrentes factos pouco abonatórios, no que toca à atribuição de certas licenciaturas, uma questão pertinente se coloca: Será que haverá necessidade de repensar o ensino superior privado em Portugal? De facto, pelo trilho das incertezas e do mal-estar geral, achamos que começa a ser preocupante a proliferação de casos pouco claros ou mesmo obscuros. Para bem da credibilidade de algumas instituições superiores privadas, bem conceituadas e credíveis nos meios científicos – e que, por uma questão de ética, nos escusamos aqui enumerar –, há que averiguar as prevaricadoras, de forma esclarecer possíveis comportamentos, ligações perigosas e, sobretudo, ilegalidades, se é que alguma vez existem. Até prova em contrário, seria uma forma de limpar o campo minado da suspeição.
A fechar, uma triste notícia: “O escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez não vai voltar a escrever, depois de ter sido diagnosticado com demência. O anúncio foi feito pelo irmão do escritor, Jaime Garcia Marquez, numa conferência em Cartagena das Índias, Colômbia. Visivelmente emocionado contou que o Nobel da Literatura está bem em termos físicos, mas que perdeu a memória”.
Um mal maior para o mundo da cultura!

1 comment:

gatosapatos said...

Uma das causas do nosso país estar como está é o facto dos políticos não terem a mínima noção do que é governar. E estas notícias das licenciaturas "manhosas" são a prova disso mesmo....