Friday, January 11, 2013

«Figuras populares de Ponte de Lima» de Luís Dantas, uma pérola da literatura limiana


“Estamos perante um conjunto de importância primordial para a nossa memória colectiva – um quinhão de biografias que nos apresentam personagens únicos, com os seus amores e desamores, as suas paixões e a forma peculiar de existir e agarrar a vida”.

Daniel Campelo

Em jeito de prenda de Natal, complementada com um cartão de boas festas (onde em nome da verdadeira amizade, algumas deferências, não merecidas, se nos foram dirigidas), recebemos do grande poeta da imagem limiano Amândio de Sousa Vieira, o livro de Luís Dantas, «Figuras Populares de Ponte de Lima», editado em 2009, pelo Município de Ponte de Lima, mas só agora trazido ao nosso conhecimento.
A última vez que escrevemos a respeito de Luís Dantas foi em Outubro de 2008, numa das nossas crónicas semanais que “detínhamos” no jornal “Falcão do Minho” (com o título “Imperativos da Memória”), a propósito do seu magnífico livro «Os Limianos na Grande Guerra», onde sem dissimulações ou subterfúgios expressaríamos o maior respeito por este extraordinário historiador, poeta e escritor, que, infelizmente, nos deixou órfãos em 20 de Maio de 2011. Ainda a propósito – desculpem-nos o pleonasmo – da nossa visão crítica, no que concerne à dimensão intelectual do Luís Dantas, e como forma de separar águas (quantas chafurdices por aí se publicam), escrevemos: “Já por várias vezes escrevemos que não é historiador quem quer ou quem, circunstancialmente, o afirma. Não basta escrever para nos afirmarmos historiadores. Esta afirmação não carece de justificação, dado que se consultarmos as visitas à Torre do Tombo ou aos arquivos distritais, facilmente detectaremos a fraca assiduidade desses autodenominados eruditos, forjadores da história em decalques sucessivos. Até já se escusam à bibliografia, como se essa atitude fizesse denotar alguma modéstia ou presunçoso eruditismo. Repetem-se uns aos outros como crisálidas da palavra e da verdade histórica”. E acrescentaríamos: “O mesmo não acontece com Luís Dantas, esse limiano licenciado em História, professor em Lisboa, poeta e autor de várias obras, com colaboração dispersa em vários jornais e revista da especialidade. (…) Tal como os trabalhos anteriores, este é mais um ensaio que em muito veio enriquecer o panorama histórico de Ponte de Lima. Por se tratarem de trabalhos inéditos, fazem a diferença. Para se ser historiador – o pensar e agir cientificamente orientado – tal como escreveria Patrick Gardiner, é preciso orientar a atenção em questões a respeito da condição e da estrutura da mente humana. É nesse sentido que vemos e sentimos Luís Dantas trabalhar”. Passados quatro anos, e mesmo com o seu desaparecimento físico, mantemos a mesma convicção.
Falando agora de «Figuras Populares de Ponte Lima», e quando era suposto, em face do que o título nos sugere, ter entre mãos uma simples descrição de figuras sem a mínima importância – por de populares se tratarem –, eis que assistimos à produção de uma verdadeira pérola literária, onde o verdadeiro (desculpem-nos a redundância) sentido estético da palavra escrita se nos apresenta, face à sua beleza, como uma tela aguarelada… poeticamente aguarelada. Nesta maravilhosa obra, Luís Dantas acaba por reforçar o estatuto maior de um poeta e escritor, magnamente burilado na arte de bem escrever. Estamos em dizer que, face ao sistema ou conjunto de sinais que permitem a expressão ou comunicação, sem desprimor para a apreciação afectiva – sempre tomada pelo gosto pessoal – de outros escritores limianos e de suas obras, «Figuras Populares de Ponte de Lima» é uma obra inultrapassável, porque nos remete para uma prática colectiva, onde a linguagem não é concebida como um fenómeno privado. Daí Luís Dantas, logo no início desta sua preciosa obra, citar Jacques Le Goff: “… e a história (é) dos homens, de todos os homens, não unicamente dos reis e dos grandes”. De facto, e fazendo nossas as palavras do prefaciador, o nosso particular amigo João Alpuim Botelho, “o que torna este livro verdadeiramente especial é a capacidade de encontrar estas pessoas [populares], no meio da multidão anónima (cada vez mais globalizada e idêntica) e de perceber que os seus comportamentos, apontados como ridículos e considerados paródicos, representam um tempo e um modo de vida que desaparece”. Através da pena de Luís Dantas, sem ridicularizar os personagens (antes pelo contrário, revigora-lhes a memória) até o linguajar popular ganha expressão colegial, pois sempre ouvimos dizer que é a linguagem no seu todo, na sua função essencial, a realização do pensamento da própria humanidade. Não é por acaso que hoje muitas das expressões populares fazem parte dos dicionários.


Perpassam pelas páginas deste precioso livro figuras como Lourenço, “o Preto”, trazido para Ponte de Lima pela mão de um general que tinha acabado a sua campanha em África, “E nas festas? Ah! Senhor, nas festas, a música da sua flauta rebrilhava. Nas Feiras Novas, era cartaz”; Pinta Ratos, “tinha o chapéu de coco descaído para a nuca e o olhar assombrado”; Zé Pilauta, o último almocreve da vila, “todas as manhãs, fizesse chuva ou sol, vinha de São João da Ribeira, com passagem obrigatória pela mercearia do Gasparinho do Arrabalde, até ao Largo”; João da Luciana; Caetano Ferrajola; João da Bomba, com “arremedos do poeta Bocaje”; O Fazenda, “ensinou muitos lavradores a ler pelo jornal diário”; O João da Barca, mestre na arte de ferrar; A República, qual Aurora “ia-se embora pelo caminho de além da Ponte a mastigar pequenas raivas”; Joaquinzinho; O Sucateiro, “dizia-se que apareceu na vila vindo não se sabe bem de onde”; O Mário; O Guerrinha, “na trabuzana da vida, os versos de zombarias e escárnios foram a sua perdição. Saíam-lhe da alma, como uma chilreada”; O Zé Povo, “tido por muitos como um dos primeiros provadores de vinhos e aguardentes do lugar”; Zé Caraitas, mestre de barbearia; São Roque; Pai Quim, “só via o rio Lima”; Manel Cauteleiro; João da Mena; João Nabiça; Zé Ferreiro, “percorreu pequenas e grandes distâncias, trepou aos cumes das serras, esgaravatou nas minas de volfrâmio, viveu vastas aventuras com pegureiros, galegos e contrabandistas, venerou os santos em festas e romarias”; O Cachadinha, “lembro-me [também nós] dele beber uma, duas tigelas e botar flores nos cabelos das raparigas com quadras de redondilha maior”; O Se Luís, “era um mouro, mas tinhas as suas folgas”; Zé Brandão, “o estudante mais boémio do Externato”; O Néu Franquinha, morador no bairro das Pereiras; e, finalmente, as Lavradeiras do Rio Lima, citando a Bicocas e a Maria da Inês.
Só percorrendo as páginas desta maravilhosa pérola literária, poderemos constatar a falta que nos faz a pena e a memória de Luís Dantas. O Município de Ponte de Lima, ao editar «Figuras Populares de Ponte de Lima» prestou um extraordinário serviço à Cultura da região. Bem-haja por isso!

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