Friday, March 01, 2013

Correntes d’Escritas, Hélia Correia e “A Terceira Miséria”!


“De que armas disporemos, senão destas / Que estão dentro do corpo: o pensamento, / A ideia de polis, resgatada / De um grande abuso, uma noção de casa / E de hospitalidade e de barulho / Atrás do qual vem o poema, atrás / Do qual virá a colecção dos feitos / E defeitos humanos, um início”.

Hélia Correia

Já há muito que nos sentíamos atraídos pelas Correntes d’Escritas, ou simplesmente Correntes, como é conhecido o encontro anual de escritores de expressão ibérica que decorre todos os anos, durante o mês de Fevereiro, na Póvoa de Varzim, numa organização do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal local. Normalmente, os escritores que aqui participam, são provenientes de países e continentes onde se falam as línguas portuguesa e espanhola, desde a Península Ibérica, passando pela América Central e do Sul à África Lusófona. O primeiro encontro realizou-se em Fevereiro de 2000, ano em que se assinalou o Centenário da Morte de Eça de Queirós. A partir de 2004, passou a ser atribuído um prémio para novas obras em prosa ou poesia, em anos alternados, chamado Prémio Literário Casino da Póvoa. Este ano, decorreu a 14.ª Edição das Correntes d'Escritas e o tão “cobiçado” Prémio Literário foi atribuído à poetisa e dramaturga Hélia Correia, com o seu maravilhoso livro – um dos melhores de poesia, que lemos até hoje – “A Terceira Miséria”, num empolgante regresso desta filóloga românica à poesia, à memória e aos clássicos. De facto, e tal como diria Carlos Vaz Marques (TSF), a paixão pela Grécia, desde há muito presente na obra de Hélia Correia, desagua agora neste livro de poesia, onde a Grécia clássica surge como farol e como impossibilidade, similitude nossa na indigência: “Nós, os ateus, nós, os monoteístas, / Nós, os que reduzimos a beleza / A pequenas tarefas, nós, os pobres / Adornados, os pobres confortáveis, / Os que a si mesmos se vigarizavam / Olhando para cima, para as torres, / Supondo que as podiam habitar, / Glória das águias que nem águias tem, / Sofremos, sim, de idêntica indigência, / Da ruína da Grécia”.

A escritora Hélia Correia (ao centro) com Ana Cristina Moreira e Porfírio Silva

Impulsionados pela imperativa necessidade de nos encontrarmos com a Hélia Correia – por forma a sentirmos-lhe o “pulsar da glória” –, e, ao mesmo tempo, auscultarmos o questionável querer temático, aberto aos motes “de que armas disporemos, se não destas que estão dentro do corpo” e “só o que não se sabe é poesia”, lá rumamos até às Correntes d'Escritas, onde assistimos a dois extraordinários painéis, que redundaram num salutar e frutífero convívio, com os escritores: Helena Vasconcelos, Jesús del Campo, Luís Cardoso, Miguel Miranda, Maria Teresa Horta, Aurelino Costa, Ivo Machado, João Luís Barreto Guimarães, José Mário Silva, Lauren Mendinueta e Vergílio Alberto Vieira, magnanimamente moderados por João Gobern e Francisco José Viegas. Foi lá, no “interlúdio” das magníficas intervenções, que sentimos o cérebro como “um órgão fazedor de poesia” e que, normalmente, “funciona sob o garrote da lógica”, qual desafio aristotélico premeditaria, também, a poesia como provocadora da catarse. Tal como foi sugerido por Helena Vasconcelos, bom seria que “trocassem as doses maciças de austeridade por doses maciças de poesia”. E Maria Teresa Horta lá foi dizendo que os poetas são os alquimistas do futuro e a poesia cada vez mais se vai tornando numa arma mortífera para os ditadores. Daí, alguma alergia ao “Grândola, vila morena” e ao facto de ela se negar a receber o Prémio D. Dinis, das mãos do primeiro-ministro Passos Coelho: “Eu não recebi da mão do primeiro-ministro o prémio e não recebi nada. Nem uma côdea de pão, mesmo que estivesse a morrer de fome. Não recebo nada da mão desse senhor”, acrescentando “que bom seria se os fracos legisladores de agora trocassem a malfadada austeridade, a carga feroz sobre as nossas costas, que provoca o desequilíbrio, a queda e o desmembrar do tecido da polis, que trocassem as doses maciças de austeridade por doses maciças de poesia para nos purgar definitivamente”… Os poetas, os legisladores não reconhecidos do mundo. Definitivamente, voltamos ao brado de Hélia Correia: “Para que servem poetas se não podem / Nem delirar, se os textos do delírio / Serão tomados pelo seu contrário? / A bela rapariga dos cabelos / Cor de violeta, Atenas, onde está? / Quem escavará o monte até aos ossos / Para que dele ressurjam esses que / Nos deixaram sozinhos?”. Será que não há nada a dizer sobre a indigência?
   

          
          Para terminarmos da melhor maneira, e como não podia deixar de ser, o reencontro com Hélia Correia veio a acontecer, o que forçaria um agradável acrescento à dedicatória de Outubro de 2012: “Assinalando o reencontro nas Correntes de Escritas de 2013. Outro beijo...”. E registamos a inquietação de Hélia Correia: “Para quê, perguntou ele, para que servem / Os poetas em tempo de indigência? (p. 7)”. Ainda que seja para cantar o "Grândola, vila morena", diremos nós e disseram eles nas Correntes d'Escritas!

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