Tuesday, December 23, 2014

«Vidadupla» em e com Sérgio Godinho?!...

«Na casa de férias de uma tia minha houve um lençol puído, rasgado e mais de uma vez remendado, debaixo do qual me deitei numa tarde de Verão…»

Sérgio Godinho

Sérgio Godinho esteve entre nós, a pretexto do desafio lançado pela Biblioteca Municipal de Viana do Castelo para connosco estar “À conversa com…”, habitual iniciativa mensal onde a mesma Biblioteca visa promover, em torno do livro, o diálogo e a troca de conhecimentos com escritores contemporâneos, proporcionando a oportunidade de conviver de perto com os autores e a sua obra. E foi isso que aconteceu com Sérgio Godinho, nascido na cidade do Porto, em 1945, e com apenas 20 anos de idade parte para o estrangeiro. Primeiro destino: Suíça, onde estuda psicologia em Genève durante dois anos, antes de tomar a decisão «para a vida» de se dedicar às artes. Mais tarde muda-se para França. Vive o Maio de 68 na capital francesa. No ano seguinte integra a produção francesa do musical Hair, onde se mantém por dois anos. Em Paris priva com outros músicos portugueses, como Luís Cília e José Mário Branco. Sérgio Godinho ensaiava assim as suas primeiras composições, na altura em francês.


Do longo e riquíssimo percurso artístico de Sérgio Godinho – o que seria fastidioso aqui esmiuçar – teremos de salientar o facto de ter sido actor de teatro e ter começado a exercitar a escrita de canções nos finais dos anos 60. O seu primeiro álbum surge em 1971, Os Sobreviventes, seguindo-se mais vinte e sete até aos dias de hoje, o que faz dele um dos músicos portugueses mais influentes dos últimos quarenta anos. Sobre si próprio disse: «Não vivo se não criar, não crio se não viver. Essa balança incerta sempre foi a pedra de toque da minha vida». Ou ainda: «Eu o que faço é tentar contar coisas, falar de coisas, fazer interrogações à minha maneira e saber que há pessoas que são tocadas por isso». Essas interrogações são “contos de um instante”, como canta numa das canções de um dos seus discos, e tanto podem falar de amor (Intermitentemente), como da situação do país e das incertezas do presente (Acesso bloqueado). O seu percurso espelha, precisamente, essa poderosa interacção entre a vida e a arte. Daí, que, mesmo enquanto voz polifónica, levou frequentemente a sua escrita a outras paragens: Guiões de cinema, peças de teatro, séries de televisão, histórias infanto-juvenis (O Pequeno Livro dos Medos), poesia (O Sangue por um Fio), crónicas (Caríssimas Quarenta Canções), entre outros exemplos.
Naquela noite de 12 de Dezembro último, na Sala Couto Viana da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, estivemos ali para falar de VIDADUPLA (contos), capítulo presente desse estimulante itinerário pessoal de Sérgio Godinho: «O que esconde e o que revela um velho lençol puído sobre a intimidade de uma mulher? Como se prova a inocência quando um álibi incrimina? O que significa a morte na vida de um carrasco, e o que significa a vida no dia da sua morte? Para onde rolam as bicicletas e caminha a história das duas operárias? O que leva um homem a deixar a sua casa, noite após noite, para dormir na rua?» – perguntas para as quais encontramos algumas respostas, através da sua bem estruturada dialéctica, segurança e cultura geral.


Sem que nos proponhamos, pelo despropósito, a explicar os nove contos inseridos em VIDADUPLA: “O lençol”; “O álibi do falso culpado”; “Notas soltas da corda e do carrasco”; “O circo de três pistas”; “O pré-catastrofista”; “O momento mágico”; “Queria só falar da minha história de amor”; “Osmose”; “O sem-abrigo, vida dupla”, atrever-nos-emos em dizer, contudo, que sentimos a magia do espelho, algo que já não é inédito na literatura ao longo dos séculos, como forma de mostrar as duas faces de cada um de nós, sentir e ser na relação com o outro: «A casa era ao pé do mar, e eu tinha trinta e quatro anos e um corpo de rapariga de vinte, pelo menos assim mo diziam os amigos, os amantes e os espelhos. Costumava acreditar que pelo menos estes últimos não me enganavam, ainda que sabendo o quanto é clemente e traiçoeiro o olhar do nosso amor-próprio…» (p. 7); o envelhecer e o rejuvenescer: «Apresentar rugas umas às outras, mudar de rugas ao fim da noite» (p. 9), dissimulando as quarentenas no teatro; o instinto e a inocência; o carrasco que não pretende ser absolvido, dado que «Não mata por convicção e muito menos por instinto. Mata por incumbência…» (p. 23); o desentendimento do corpo e da alma «ao longo de todas as querelas, interiores e exteriores, e assim preparam a sua separação eterna.» (p. 25); o nascer e viver no circo «é andar à volta e ter só uma saída, no lugar e no tempo da próxima entrada…» (p. 31), numa alegoria à própria vida, mesmo quando em três pistas circulares, iguais; o catastrofista, «o tal senhor extravagante e enviesado, que antecipa, por método ou costume ou desvario, as catástrofes iminentes» (p. 43); o momento mágico, ficando sozinho ouvindo os seus ecos pela tarde, «tinha aprendido a gostar de ópera, eu que a tinha desconsiderado, achava-a desadequada, enfática, artificial – tudo o que afinal a vida era e a arte pode ser» (p. 62); o antes e o depois do ser da vida, quando «o meu antes não era lá grande coisa, querer explicar isto é quase perda de tempo…» (p. 70); o enigma da auto-estima, não se julgando inferior aos outros: «Mas isso, só por reconhecer em todos virtudes iguais às minhas. É esse o enigma da auto-estima, não ter nível por onde se aferir.» (p. 79); e, finalmente, o sem-abrigo, vida dupla, enigma que leva um homem a deixar a sua casa, noite após noite, para dormir na rua: «Vou preencher o presente com as esperanças do passado. Não com as sobras do passado, mas com o que ficou. A esperança é o que ficou.» (p. 91).
Ao termos feito esta extrapolação lexical, mais não pretendemos do que “aguçar o apetite” dos possíveis leitores destes maravilhosos contos, reunidos no sugestivo título de VIDADUPLA. Quiçá, o outro lado de Sérgio Godinho.
       NOTA MÁXIMA!

Friday, December 12, 2014

Álvaro Santos Pereira e os “jobs for the boys” de Paulo Portas!...

«Tenho orgulho de ter lutado pelo meu país. Tenho orgulho de ter mostrado que é possível ir contra lóbis e interesses instalados.»

Álvaro Santos Pereira

Por certo que muitos dos habituais leitores destas nossas deambulações literárias estarão recordados quando, em Agosto de 2012, escrevemos que sempre fomos leitores inveterados de teses científicas, em qualquer vertente da teoria do conhecimento, acreditando – ainda que com algumas reservas – naquilo que os seus autores podem trazer de novo ao pensamento universal. E quando essas teses se apresentam como soluções aos acidentes de percurso das áreas a que se confinam, faz aumentar em nós a “curiosidade especulativa”. Na altura, referíamo-nos ao livro «Portugal na hora da verdade: como vencer a crise nacional» da autoria de Álvaro Santos Pereira, aquele que após tomar posse como ministro da Economia, e contrariando os apelativos dos defensores dos prefixos (pão quentinho a sair do forno de Miguel Relvas), aconselhou a que o chamassem de Álvaro, sem o doutor (aplaudimos de pé), livro esse onde procurava mostrar que Portugal vive hoje três grandes crises: a crise das finanças públicas, a crise da competitividade e do crescimento e a crise do endividamento externo. Entre as questões debatidas, incluem-se as seguintes: qual é o verdadeiro estado das nossas finanças públicas? Porque é que o nosso Estado gasta tanto? Quantos institutos e outras entidades públicas existem e quanto gastam? E porque estamos tão endividados? Será a dívida nacional sustentável? Quão grave é o problema de competitividade das nossas exportações? – questões e interrogações pertinentes, reforçadas pelo facto de ele mesmo sublinhar ao longo da mesma “dissertação” que havia fortes indícios de que o nosso Estado estava a matar a economia nacional, afirmando mesmo que os funcionários públicos não eram responsáveis por esta situação: “Uma verdadeira reforma do Estado que torne as nossas contas públicas saudáveis e sustentáveis não deve ser feita contra os funcionários públicos ou contra o serviço público. Muito pelo contrário. Uma verdadeira reforma da administração pública terá de melhorar o serviço público, não piorá-lo. Uma verdadeira reforma da função pública terá de aumentar o prestígio do emprego público, não diminuí-lo. Uma verdadeira reforma do Estado terá de incentivar a auto-estima dos funcionários públicos e fazer com que sejam eles próprios a estimular a mudança de que a nossa administração pública necessita”.


Como era previsível, este tipo de teorização levá-lo-ia à precipitada saída do governo ultraliberal de Passos Coelho. Hoje, voltamos a ser confrontados com uma nova “bomba-relógio”, intitulada «Reformar sem medo: um independente no Governo de Portugal», com 1.ª edição em finais de Novembro deste mesmo ano. Seu autor, Álvaro Santos Pereira, vem agora a “terreiro” afirmar que «durante muitos anos, eu estive na posição confortável de poder criticar à distância. Em livros, em blogues, em artigos de jornal. Além disso, como vivia no estrangeiro, a minha posição era ainda mais cómoda, visto que as minhas críticas certamente não afectavam o meu dia-a-dia. Podia criticar o que quisesse, pois isso não teria consequências para a minha vida privada ou familiar…» (p. 16), numa espécie de preâmbulo ao capítulo de “Uma missão (quase) impossível”. É nesta nova “dissertação” de «Reformar sem Medo», que o ex-ministro da Economia põe o dedo na ferida, abordando de uma forma clara um pouco de tudo: intriga política (sendo Paulo Portas uma das figuras principais), luta contra lóbis e as negociatas de bastidores com a troika: «Quando saí do Conselho de Ministros, pensei que tínhamos dado um importante passo para conseguirmos o IRC a 10% para os novos investimentos. Porém, sabia também que ainda havia muito caminho para andar, até porque Vítor Gaspar claramente não era apologista da medida. Não me enganei. No sábado seguinte, marcámos uma reunião com o Ministro das Finanças, em que estiveram presentes também Carlos Moedas e a minha equipa. O resultado foi desastroso. Vítor Gaspar disse muito claramente que quem tinha a tutela e a responsabilidade das Finanças em Portugal era ele, e que ele não gostava da medida…» (p. 343). Vítor Gaspar e Carlos Moedas, dois nomes sonantes, privilegiados em calendas europeizadas.
«Reformar sem Medo», acusa decepções, ineficiências e, sobretudo, crítica a troika, os lóbis, o “país que venera formalismos” e Paulo Portas: «Se há algo que me orgulho de ter feito durante a minha governação foi a luta contra os lóbis e os interesses instalados. Sei que sou suspeito, mas penso que na nossa democracia não há muitos exemplos de Ministérios da Economia tão independentes como o nosso foi (…) Os lóbis nunca tiveram a minha simpatia. Os aparelhistas partidários também não. No meu Ministério os lóbis ficaram à porta. E os aparelhistas nunca encontraram na nossa equipa quem lhes desse ouvidos» (p. 223) – exame de contrição em louvor próprio, para depois desferir algumas alfinetadas a Paulo Portas: «Neste sentido, um colega do Governo disse-me uma vez que havia a percepção de que as coisas não andavam bem no Ministério da Economia e do Emprego. Perguntei que coisas eram essas. As reformas? Não disse ele, as reformas estavam a ser feitas e até tínhamos feito um bom trabalho. Os cortes das rendas e o combate aos interesses instalados? Não, isso nós também tínhamos feito. A reforma do Estado no que dizia respeito ao Ministério e a reestruturação das empresas públicas? Não, isso também foi alcançado e bem, respondeu-me. Então, o que é que falta?, perguntei. “Sabes”, respondeu ele, “o partido queixa-se que as nomeações nunca mais arrancam, que vocês demoram muito a substituir os socialistas que lá estão.” Foi aí que eu percebi (ou, melhor, confirmei) que a alegada ineficiência do meu Ministério estava na “demora” em nomear os correligionários dos partidos para os cargos existentes nas diferentes empresas públicas e instituto…» (p. 50). O homem do “irrevogável”, aquele que há muitos anos, aquando director do “Independente”, abominava política e políticos, mantinha a mesma serenidade e a mesma “lata” dos “aparelhistas” partidários, na procura de darem emprego a tanta gente cujo único mérito era (e é) o cartão de militante. Daí, não estranharmos o bater da porta do – até aqui líder da concelhia centrista em Viana do Castelo – nosso particular amigo Carlos Meira.
Agora começamos a entender o porquê do nosso livro «Baliza trágica de um naufrágio» ter vários engulhos no seio do corporativismo instalado, o que tem dificultado a sua aceitação nos “aparelhos” editoriais. Há muita coisa por explicar e os “aparelhistas” movimentam-se no sentido de silenciarem quem não alinha no mercantilismo das “consciências aparelhadas”, contrário ao pensamento de Pascal, quando afirma que «a consciência é o melhor livro de moral e o que menos se consulta».
         Até quando democracias assim condimentadas? A pergunta fica no ar!

Friday, December 05, 2014

O «Corpo» e a alma apaziguada de Célia Meira!...

«Nunca estejas completamente desocupado; lê ou escreve, reza ou medita, ou faz qualquer coisa de útil para a comunidade.»

T. Kempis

CORPO, objecto tangível que muitos dizem opor-se ao espírito, à alma. O conhecimento geral da natureza corporal data da distinção da natureza e do mito no pensamento dos pré-socráticos. Leucipo chegou mesmo a afirmar que «o universo está ao mesmo tempo vazio e cheio de corpos». Contudo, e por outro lado, há quem afirme que a distinção radical da «substância pensante» e da «substância extensa», abrindo a possibilidade de um pensamento puramente objectivo da natureza corporal, sublinha por outro lado a heterogeneidade da alma e do corpo. Para Descartes, por exemplo, a essência da matéria que se manifesta sob a forma de corpos, reside na extensão: «A natureza da matéria, ou do corpo tomado em geral, não consiste no facto de ser uma coisa dura ou com peso, ou colorida, ou que toca os nossos sentidos de uma outra forma, mas somente em que é uma substância que se estende em comprimento, largura e profundidade» – citamos do “Princípios da Filosofia”.
Mas, o que nos traz aqui hoje é o CORPO na sua verdadeira existência, como o corpo que somos, e não o corpo que temos, totalidade indivisa, que caracteriza o nosso ser no mundo… O CORPO, sujeito, em Célia Meira, nascida em Deão, Viana do Castelo, a 19 de Abril de 1982, jovem formada em engenharia civil pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e a desempenhar actualmente funções no Controlo de Qualidade em obra. Editou o seu primeiro brado poético, «poesia das letras», em 2012.


Já por várias vezes afirmamos que nunca foi nosso propósito (nem a tal nos atreveríamos) comentar ou explicar poesia, dado que nem uma coisa nem outra se coadunam com o nosso princípio estético da arte e da literatura pelo gosto. Ao desafio lançado pelo bom amigo Gonçalo Fagundes Meira, em apresentarmos o mais recente brado poético da jovem Célia Meira, CORPO, que diz sentir o bichinho das palavras desde que se lembra de si e é na escrita que se encontra, teremos de confessar que sentimos algum receio em permitirmo-nos percorrer tão lentamente este mesmo brado, chamado CORPO, precisamente na dúvida de não estarmos à altura de percorrê-lo “tão lentamente, que o tempo parece pairar…”. Mas como só os fracos não aceitam desafios, resolvemos alinhar no contraditório da distinção radical da «substância pensante» e da «substância extensa», abrindo assim a possibilidade do pensamento puramente objectivo da conciliação, «união substancial» em Descartes. Daí, naquela tarde de 29 de Novembro último, com Célia Meira, termos aceite tal desafio, percorrendo o CORPO “tão lentamente, que o tempo parece pairar…”.
Ouvimos dizer tantas vezes que não é poeta quem quer, mas quem pensa, sente e vive. E a nosso modesto ver, Célia Meira reúne estes três requisitos, porque valoriza o SER existencial: «Piso terra solta, / Piso rocha, piso mar… / O corpo a balançar, / Espírito que navega / E a alma a flutuar! / Sou eu, sou outra…» (p. 13). Neste CORPO poético perpassamos pela Terra em pose imaterial, transfigurando-nos; sentimos o desmoronar de um presente que já foi passado; o coser com afinco «um simples pano amarrotado, / Que carrega agora a dor ao peito / E o meu coração bordado!» (p. 17), numa alusão ao lenço dos namorados; cartas escritas, onde não se sente o receio de escaparem as palavras ou a caneta ficar sem tinta; a incongruência do racional: «Esta incongruência do racional / Que me faz ser só animal / Faz-me bem… / Faz-me tão mal…» (p. 21); o sentir do Alentejo, no calor do silêncio e onde o sol imerso deixa o corpo repousar; regressos que jamais virão e onde pairam olhos de segredo e medo; encontramos expressões matemáticas com letras do poeta, «sem sentido rebuscado / Só lógica aritmética… / Sem significados dúbios / Ou pontuação desordenada, / Somo letras do poeta / Em conclusão desconcertada…» (p. 27); encruzilhadas do destino, onde só a vontade do poeta domina; o negrume do escurecer; o desejo do «corpo em flamejo / Do teu corpo em mim…» (p. 43); a necessidade do estar, intocável, acreditando no acontecer do amor.


Neste “celiano” CORPO poético há ainda memórias; irritações a estados de complacência «em que ocultamos quem somos, / Julgando-nos tão só pela aparência / agindo pelos outros…» (p. 49); formas de ser livre quanto refém de si mesmo; inevitáveis ilusões, condimentadas pelo Amor «que em frémito se dispam os nossos corpos…» (p. 57); ser sem o outro aquém de si próprio; soma de erros e incertezas, subtracção de medos, multiplicação de decisões, divisão de segredos, redundando «Em valor absoluto… / na incógnita do limite do infinito!» (p. 63); prelúdios de dores anunciadas, até que as mesmas adormeçam; cheiro de café no ar; perfume de promessas; pratos e espelhos partidos; tinta da caneta que ensurdece a mão e música que emudece o papel; coração assoberbado em corpo despedaçado: «O choro degola o papel / No silêncio revolto da pele…» (p. 71); dores no olhar, inspirando avidamente o medo; horas que ditam o fim; nada ter para além do pensar: «E o meu coração já era teu / Antes de to querer dar…» (p. 85)     
E poder-se-á perguntar, quem é Célia Meira? Ela mesmo responde: «Não sou voz nem fado, / Nem trago arrependimento / Sou um som cantado / Em silêncio cimento… (…) Não sou bem nem mal / Nem palavra catalogada / Sou só animal e alma apaziguada…» (p. 83). E por aqui nos ficamos, por forma a não condicionarmos a livre interpretação dos potenciais leitores de Célia Meira.
Parabéns Célia Meira! Continua na senda do teu amor livre, porque como propriamente dizes: «É vontade, é querer, / É partilha e felicidade / É vaidade e orgulho, / É saudade…» (p.87).
        Gostamos do que lemos, e isso nos bastou!

Friday, November 28, 2014

Viajando das «Outonias» aos «Poemas Tardios» com Domingos da Calçada!...

«Em “Outonias”, obra de poesia, publicada já no distante ano de 1988, Domingos da Calçada não se desterra da paisagem onde levanta o seu memorial, que é a sua aldeia-presépio de Durrães, rincão edénico onde se fez homem e poeta, do qual vive uma saudade antessentida e sofrida…»

Fernando Pinheiro

Já aqui uma vez escrevemos (Junho de 2013), a propósito de uma magnífica obra intitulada “Gente do Vale”, obra que premiaria a importância e a preponderância memorialista de Domingos da Calçada, um dos maiores – senão o maior – contistas que conhecemos até à presente data. Afirmamo-lo, na altura, com tal convicção, que não tememos a rotulação de uma presumível leviandade, que alguém nos pudesse imputar – tal a nossa estética convicção, da arte e literatura pelo gosto –, dado que já conhecemos os seus escritos há mais de trinta anos a esta parte, contextualmente tomada em boa conta, aquando da saída da obra de grande fôlego «Vale do Neiva: Subsídios monográficos» (1982), hoje uma raridade bibliográfica, onde Domingos da Calçada deixaria impressos seis magníficos trabalhos e um soneto. Esse soneto, qual “Senhor do Lírio” (…Agora, brilha ali bem mais escura / a luz que se desprende lá da altura / contra a muralha – ultraje do martírio / que dum recanto puro, abençoado, / sujou da mancha odiosa dum pecado / sem reparar, contra o Senhor do Lírio.) fazia antever a sensibilidade e a alma “Mater” de um poeta que, respirando, vivendo e sentindo, no dizer de Fernando Pinheiro, a sua “aldeia-presépio” de Durrães: Adoro-te, cantinho onde nasci, / jardim de virgens flores perfumadas, / sacrário aonde guardo as mais sagradas / recordações das horas que vivi! – citamos de «Outonias», p. 39, nos propõe em fazer desfilar “diante de nós na sua castiça espontaneidade, tão próprio do minhoto, e preenchem as suas cantantes parlengas com preciosos localismos que enchem a alma a quem gosta de ser seduzido pelas novidades semânticas e pela fantasia da linguagem”, paráfrase arrancada à nota introdutória ao brado poético «Poemas Tardios», magnanimamente assinada por Fernando Pinheiro, e com a qual corroboramos inteiramente.
Domingos da Calçada, pseudónimo literário – quiçá, de guerra – de Domingos de Castro Barbosa Maciel, nascido em Durrães, Barcelos, a 18 de Fevereiro de 1931, foi publicamente homenageado, em 4 de Julho do corrente ano, por altura da XXXII Feira do Livro de Barcelos, pela edilidade barcelense, na pessoa do seu presidente Miguel Costa Gomes, com o Grau Prata, Medalha de Mérito Cultural. Nesse mesmo dia, com a anuência da «Tertúlia Barcelense», foi dada à estampa «Poemas Tardios», pérola da poética regional, porque genuína, perfeita, sentida e saída do espelho da alma. Em segredo, numa cumplicidade assumida com o amigo comum, Mota Leite, já o havíamos lido em «Outonias» (conteúdo que, face à raridade, seria por nós fotocopiado e delicadamente encadernado). «Poemas Tardios», com dedicatória a preceito, ainda que exagerada nas suas deferentes considerações, admiração e estima, acaba por confirmar a nossa percepção, da elevadíssima dimensão de carácter, nobreza, humanismo e sensibilidade criativa em Domingos da Calçada: «Nascer Filho d’Algo ou pobre / que mais tem? Entendo eu / que na falta de Alma Nobre / até o mais nobre é plebeu…», porque «Há palácios brasonados / a atestar, na fidalguia / de ancestrais antepassados, / a mais torpe vilania – Verdade cirúrgica, ajustada à nossa condição de virmos todos ao mundo «à sombra do mesmo Fado: / – ladrão nobre, é porco imundo, / pobre sério, é Nobre e Honrado!» (p. 41).


«Poemas Tardios» é um magnífico livro de poesia, escrito por um não menos magnífico poeta – sim, não é poeta quem quer… –, porque, à boa maneira aristotélica, “encontra-se na epopeia e na tragédia e também na comédia e no ditirambo, bem como em grande parte na música da flauta e da cítara” (1441a 13-16): «Orgulho da minha Raça, / o Doce Rio, ao passar, / dando um ar da sua graça / nunca deixa de entoar / melodias de encantar, / como não consigo ouvir / em qualquer outro lugar / pois, este Rio, ao passar / no seu manso deslizar, / incapaz de se calar…» (p. 11), ou “realiza-se pelo ritmo, pela linguagem e pela melodia”, parecendo que «Poesia é virgindade, grito, anseio / de quem nasceu com alma inconformista / e grava doloroso historial, / burilando palavras escolhidas / e muito raramente compreendidas, / para compor estrofes / que são pedaços d’alma, a ressoar / em gritos de mudez interior / cristalizados no poema…» (p. 14) – simplesmente, sublime. Aqui, nestes «Poemas Tardios», a nosso modesto ver, não há temporalidades, porque da cinza reacendem-se primaveras, denunciando-se, ao mesmo tempo, falsos moralismos e hipocrisias, esses sim, intemporais: «Conheço ilustres senhores / que com toda a hipocrisia / se tornaram ditadores / a pregar democracia. / Há quem chame democratas / aos palhaços palradores, / que simulam as bravatas / engodando os eleitores…» (p. 26). E o Pavão expedito, que passa «a espenujar com jactância / o seu brio da distância / entre o zero e o infinito!» (p. 31), condimentado com o “cão rafeiro”, “camaleões” em trasmuda, “zaganeiros” (ratos enormes) de proa «da ladina rataria, / foram parar a Lisboa / aos cargos de Alta chefia.» (p. 36), e pessoas «em vaidosa presunção, / valem menos que a postura / ou a sombra do meu Cão / e, pensando nessa gente / embusteira, que conheço, / aumento ainda o apreço / pelo meu Cão da corrente!» (p. 37).
E porque seria despropositada a nossa suposta presunção de deambularmos de uma forma minuciosa pelo conteúdo desta maravilhosa poética, e porque achamos que a poesia não se explica (alheado ao facto de que não se pode inventar, o que inventado está), terminaremos citando o escritor-poeta e editor Fernando Pinheiro: “Ao longo de décadas, Domingos da Calçada foi coligindo histórias ouvidas directamente da boca do povo, para as fixar num registo literário que ultrapassa o plano da ficção propriamente dita, mercê do realismo com que estão impregnadas as personagens, as situações relatadas, os locais descritos. Quer isto dizer que a realidade não precisou de ser inventada, porque ela vive e permanece nas páginas das obras de Domingos da Calçada, e a sua representação simbólica permite ao leitor um emocionante com a experiência histórica de um povo que contra ventos e marés sofreu a canga da exploração, combateu as injustiças e lutou pelo seu progresso”. Subscrevemos inteiramente: «Da panóplia dos punhais / a embeber-me o coração / penetram muitos mais / os da pérfida traição!» (p. 38), sumula comportamental de uns tantos “Escariotes”, que “remordem de inveja / por eu ser quem quero ser / e não quem querem que eu seja!”. Assim é o saudável AREJO de Domingos da Calçada, escritor-cronista e poeta do Vale do Neiva, mas cidadão do aquém e além-mundo: «Ninguém como um poeta, sentirá / nos voos d’alma para além do aquém, / que o sonho vive lá, na zona etérea / e, para aquém do além, tudo é matéria» (p. 15). Matéria-prima, de alto quilate, diremos nós!   
          NOTA MÁXIMA!

Friday, November 21, 2014

«Biografia involuntária dos amantes», a procura do “Outro” em João Tordo!...

«Talvez João Tordo seja um escritor existencial, já que esta antiga palavra engloba simultaneamente os aspectos espirituais, sociais e materiais da realidade…»

Miguel Real

Recorrente da brilhante iniciativa da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, «À conversa com…», de trazer até nós um dos escritores portugueses (a par de outros, mas muito poucos…) com quem mais nos identificamos, João Tordo, eis que damos conta da nossa habitual empatia por tudo o que escreve, deixando-nos seduzir, mais uma (e desta) vez, pelo seu último romance «Biografia involuntária dos amantes».


Para os menos atentos, convenhamos em lembrar que João Tordo, aliado ao facto da circunstancial consanguinidade, por ser filho do cantor Fernando Tordo (sem que isso possa constituir qualquer tipo de condicionante ou sombra à sua excepcional e nata criatividade), nasceu na cidade das sete colinas, Olisipo de Tagus, em 28 de Agosto de 1975. Formou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e trabalhou como freelancer em vários jornais. Estudou Jornalismo e Escrita Criativa em Londres e Nova Iorque, onde viveu intensamente e cultivou a sua “memória selectiva”, como costuma dizer.  Foi vencedor do Prémio José Saramago 2009 com o romance «As Três Vidas» (2008) depois de, em 2001, ter vencido o prémio Jovens Criadores na categoria de Literatura. Foi finalista do prémio Melhor Livro de Ficção Narrativa da Sociedade Portuguesa de Autores em 2011 com o romance «O Bom Inverno» (2010), do Prémio Portugal Telecom 2011 com «As Três Vidas», publicado no Brasil, e ainda do Prémio Fernando Namora com «Anatomia dos Mártires». Trabalha como cronista, tradutor, formador em workshops de ficção dedicados à Escrita Criativa e ao Romance, e guionista, onde participou em várias séries de televisão, incluindo «O Segredo de Miguel Zuzarte» (RTP), «4» (RTP) e «Liberdade XXI» (RTP). Para além de ter participação em diversas antologias literárias, publicou sete romances, alguns dos quais estão traduzidos em diversos países, nomeadamente em França, Itália, Brasil, Sérvia e Croácia: «O Livro dos Homens Sem Luz» (2004), «Hotel Memória» (2007), «As Três Vidas» (2009), «O Bom Inverno» (2010), «Anatomia dos Mártires» (2011), «O Ano Sabático» (2013) e, finalmente, «Biografia involuntária dos amantes» (2014), livro esse que serviu de mote a mais dedos de conversa, na última sexta-feira, 14 de Novembro do corrente ano.


Em «Biografia involuntária dos amantes», tudo começa numa estrada (AP-9) adormecida da Galiza, onde dois homens atropelam um javali: Mas o animal atravessou-se no nosso caminho, correu para o desastre e destruiu o pára-choques do carro, projectando fragmentos de si próprio, satélites desgovernados em torno de dois sóis que eram as luzes dianteiras. O focinho bifurcado do mamífero explodiu de sangue… (p.13). “A visão do animal morto na estrada levará um deles — Saldaña Paris, um jovem poeta mexicano de olhos azuis inquietos — a puxar o primeiro fio do novelo da sua vida. Instigado pelas confissões desconjuntadas do poeta, o seu companheiro de viagem — um professor universitário divorciado — irá tentar descobrir o que está por trás da persistente melancolia de Saldaña Paris. A viagem de descoberta começa com a leitura de um manuscrito da autoria da ex-mulher do mexicano, Teresa, que morreu há pouco tempo e marcou a vida do poeta como um ferro em brasa. O narrador não poderia adivinhar (porque nunca podemos saber as verdadeiras consequências dos nossos actos) que a leitura desse manuscrito teria o mesmo efeito sobre a sua vida. As páginas escritas por Teresa revelam a sua adolescência no seio de uma família portuguesa contaminada pela desilusão: um pai ausente e alcoólico, um tio aventureiro e misterioso, uma mãe demasiado protectora” – podemos ler em sinopse.
João Tordo, é a primeira vez que tem uma narradora no feminino – Chamo-me Teresa de Sousa Inútil. O segundo apelido é inventado. Esta história que vou contar é sobre o meu tio e é também sobre mim, embora os narradores muitas vezes se escondem por trás de outras pessoas, como Alice se escondeu por trás de um espelho (p. 109) –, o que, na nossa modesta opinião, se reflecte numa tentativa do autor em passar para o outro lado do espelho, por forma a ultrapassar a dificuldade em compreender o ser humano do ponto de vista masculino. E é o próprio João Tordo que nos revela esse mesmo inquietante desafio, quando, numa entrevista a Luís Ricardo Duarte (JL), imprimiu o lado feminino, ao sentir uma grande intimidade com a Teresa: “A prosa engrenou (…). Há até alguns pormenores que saltam à vista. Essa parte tem uma linguagem diferente, uma cadência mais pausada, outra pontuação…” – corroboramos com as palavras do autor, porque foi isso que sentimos. Mesmo permitindo-se a correr riscos, João Tordo – quiçá, o Jaime de Teresa (Sei que o olhei com a certeza de que aquele rapaz gago, tímido e desajeitado seria o meu único amor verdadeiro. Nenhum de nós, até àquele dia, sequer provara uma cerveja ou um beijo) – arriscou em sair da sua zona de conforto. Intimidades femininas, são sempre intimidades femininas: A única pessoa a quem contei que o meu pai aparecera na televisão e no jornal foi a Julieta, a primeira rapariga da nossa turma a quem apareceu a menstruação. Na altura, era a minha única amiga. Eu detestava as raparigas. Odiava os risinhos de escárnio, desprezava os grupinhos, evitava as conversas no balneário do ginásio. No primeiro ano naquela escola, uma das nossas colegas descobriu um penso higiénico na mochila da Julieta (p. 121), em tempos em que se cheirava a pastilhas Gorila, a tabaco, a after-shave, a suor, a ranço, “a sexo (alguns cheiravam a sexo) e, pior do que todas essas coisas, a perfume”.  
“A vida adulta”, “o manuscrito de Bríon”, “o tempo peleja contra os seus lírios e as suas rosas”, “dezoito” – Guardei o manuscrito numa gaveta do quarto de Andrea e prometi não voltar a tocar-lhe. Supersticiosamente, tapei-o com a roupa de infância da minha filha, como se assim pudesse estancar o mal que aquelas páginas tinham feito (p. 225) –, “o eco dos fantasmas no papel”, “o grito dos velhos terrores”, e “a sombra dos nossos passos”, são percursos (capitulares), desvelando o passado, para que este não contamine irremediavelmente o futuro. A nosso ver, à semelhança do «Ano Sabático», João Tordo tenta perceber até que ponto é possível colocar-se no lugar do “Outro”, através de lugares e emoções comuns a qualquer um de nós. No fundo, uma viagem “filosófica”, onde “continuamos a procurar um sentido para as coisas; quão longa essa quimera, quão árduo esse caminho em busca de uma resposta. Talvez essa resposta seja como no sonho de Saldaña Paris: um lugar em que se flutua. Sim, é possível que seja isto: uma incógnita ou um sem-número de possibilidades, todas inatingíveis; a tal sístole poderosa que nos esmaga e depois nos dispara em todas as direcções até aos confins do espaço” (p. 415). Aqui fica o convite: «Agora entramos». Sim, a entrarem na «Biografia involuntária dos amantes», dado que há muito mais para revelar.
Um autor que se recomenda.  
         NOTA MÁXIMA!

Saturday, November 15, 2014

«Escritas desencarceradas» de Orlando Ferreira Barros!...

«…As macieiras da sua infância, ali mesmo à beirinha de casa, germinavam no silêncio retraído de um pomar abandonado, meio selvagem, dono sem-dono.»

Orlando Ferreira Barros

Tarde de 8 de Novembro (sábado), tarde profundamente emocional, a vivida na Sala Couto Viana da Biblioteca Pública Municipal de Viana do Castelo, com a grande responsabilidade, ainda que imerecida, de apresentarmos as quatro primeiras «Escritas desencarceradas» do excelso escritor vianense – porque, apesar de ter nascido em Leiria (1942), em 1969 emprenha-se de Viana do Castelo, onde, neste momento, acha que daqui nunca saiu. Vive feliz, na fronteira Meadela/Perre (numa solidão acompanhada), com a família e mais duas canadianas que juraram nunca abandoná-lo (as juras, mesmo as de amor, são para se cumprir) – ORLANDO FERREIRA BARROS: "Mater", "O Pedido da Velha Messalina", "O Delito de Octávio Bernardes" e "Visto-me para Desafiá-los".
Foi mais um dia em que preenchemos o espaço vazio, como vazia será a nossa vida sem os livros e a memória daqueles que, apesar de viverem noutras Galáxias, foram ali recordados pelo bom amigo Orlando Ferreira Barros, através da sua escrita e da sua memória (solum moritur homo qui oblitus est). Este SENHOR HOMEM, inspiração nossa em Marlene Ferraz e na titular comenda à inglesa, apanha as primeiras palmatoadas, aos seis anos de idade, por escrever “tecto” sem “c” e Primavera com minúscula; é chamado à polícia, em 1959, por causa dos seus textos da récita de finalistas; vai estudar para Lisboa em 1960 e, no ano seguinte, apaixona-se irremediavelmente (tal como a Espanca); em 1962 participa nas manifes universitárias e é preso com o Medeiros Ferreira e o “Cenoura” (Mais tarde veio a ser conhecido como Jorge Sampaio); em 1969 vem para Viana do Castelo; em 1972 nasce a sua filha loira; em 1973 começa a escrever a sério e recebe o seu primeiro prémio literário: Teatro Universitário do Porto; em 1988 nasce a sua filha morena; em 2010 deixou de ver os canais portugueses de TV; em 2011 nasce o seu neto macho; em 2012 nasce a sua neta fêmea; em 2013 fez as contas e somou seis prémios literários; em 2014 ganhou mais um prémio (vindo de além Atlântico) e continua a escrever, o que lhe dá sentido a vida; em 2026, segundo a previsão de uma cigana decifradora das linhas enigmáticas da palma da mão, parte para outra galáxia, lúcido e satisfeito porque a vida mereceu ser vivida.


Apesar de nos sentirmos demasiadamente pequeninos para falarmos deste grande escritor nosso, Orlando Ferreira Barros, quais vistinhas coladas “no duplo espelho para sentir a picada de asco contra mim próprio”, foi com o maior orgulho que resolvemos não resistir à “remordida maquinação”, potenciada por esse mesmo espelho, quando o bom amigo e MESTRE Orlando, no sentido escolástico de peripatéticos que somos, entendeu dar oportunidade a Miranda Rebôlo, aquele que (segundo um iluminado, erudito, cá do burgo de Atrium) escreve melhor que nós, para desencarcerar escritas suas em Mater poesia, a pedido da Velha Messalina, causa-efeito (suporte de transformação e transmissão de movimento) do Delito de Octávio Bernardes, onde irei Vestir-me para desafiá-los, naquele momento, não a estarem presentes, dado que já lá estavam, mas para partilharmos o pensamento, não entregues a nós próprios, dado que depressa descobriríamos a inanidade e a vaidade da existência, num mundo em que Orlando acredita que «ainda há livros e versos / a marginar a solidão da tua ausência / ainda há estragos, inquietações / a roer a pele dos deserdados…», memorial poético a recordar o eterno Fernando Canedo, a viver numa outra Galáxia.
Foi de Orlando Ferreira Barros, a viver feliz em Viana do Castelo, que naquela maravilhosa tarde de sábado, a pedido da Velha Messalina, também resolvemos sentarmo-nos naquelas cadeiras, até ali vazias, da Sala Couto Viana chique, coroada de odores dulcificados, pedindo num murmúrio arrastado de brandura treinada nos dias anteriores (os que antecederam aquele acto solene), uma maçã “porta da loja”, fruta portuguesíssima, rural e valente, desdenhadora de sulfatagens e químicas envenenadoras, descascada e cozida. Foi assim que nos sentimos naquele dia.
É evidente que, nesse mesmo dia, não aceitamos aquele desafio para explicar os conteúdos das primeiras quatro «Escritas desencarceradas», encarceradas, circunstancialmente, numa artesanal caixinha, à espera de outras tantas escritas desencarceradas, até preencherem o espaço vazio, como vazia será a nossa vida sem os livros e a memória daqueles que, apesar de viverem noutras Galáxias, foram ali recordados pelo bom amigo e excelso escritor, Orlando Ferreira Barros: sua mãe Edmeia, onde «todo o tempo é de amor maternal / desde o cintilar do dia / até à chegada do temporal…»; Mestre Pinto, «Meu irmão, mestre, meu amigo, / bravejando com a emoção / dos inquietos e dos convictos…»; Eduardo Freitas (Para tão longo esplendor tão curta vida), «Este mundo é tão grande, Eduardo, / mas não sabe / das ondas do mar…»; Fernando Canedo, onde «ainda há o teu paciente deslizar / a pé, pelos ingratos atalhos do saber…»; Lucilo Valdez, onde «sozinho no escuro, sem medo / como herói desgarrado, aguerrido, / que se ergue do mortal degredo / renovado e moço…»; Pedro Fins, «Se eu morrer antes de ti, / Pedro, / vou sentir na imperfeição da tua ausência / o outono a escurecer...»; A Taberna da Espanhola, na rua do Vilarinho, onde se soltam «eferreás alcoólicos, embriagados / da boca da estudantada, vozearia sem nexo, / um casal de jovens levanta-se, adormentado, / vai-se aliviar no único wc, tipo unissexo…»; e, finalmente, quem não se lembra do Toca Tone, sob a inspiração poética de Eugénio Monteverde, «Esse castiço vianês? / Com concertina-trombone / Fez-nos vibrar tanta vez / A concertina tão velhinha / Já sem rés, fás, mis, dós / Dava o pouco que tinha / Mas ele ajudava com a voz…». De facto, Orlando Ferreira Barros faz-nos sentir que “continuamos vivos, aqui ou numa Galáxia”.
E mais não nos apraz dizer, sem que antes vos apele ao contraditório do delito de Octávio Bernardes «quando o brado rasgou o silêncio duro da sala de aula, sentimo-nos atravessados por um terror sísmico. Nas carteiras, mais cagados que poleiro de galinhas, percebemos o lobo a farejar a vítima»… Não, Orlando Ferreira Barros nunca teve necessidade de se pirar daqui, porque aqui pensa, escreve e vive feliz.
        NOTA MÁXIMA! 

Saturday, November 08, 2014

«O Tempo Morto é um Bom Lugar» com Manuel Jorge Marmelo!...

«…Ainda que não me veja muito conveniente remexer neste assunto, acabei por perder algum do meu precioso tempo morto a cogitar a possibilidade de algum dos meus agiotas ser impiedoso e cruel ao ponto de ter assassinado Soraya.»

Manuel Jorge Marmelo

À conversa com… é uma iniciativa da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, que visa promover, em torno do livro, o diálogo e a troca de conhecimentos com escritores contemporâneos, proporcionando a oportunidade de conviver de perto com os autores e a sua obra. Com a mesma iniciativa, que embrionariamente remonta a Outubro de 2009, cujo primeiro convidado foi o escritor angolano Luandino Vieira, pretende-se que seja um espaço de incentivo à leitura, de divulgação das obras dos autores da actualidade, de promoção da cultura e do conhecimento, e, sobretudo, de interacção entre o público leitor e os escritores.
Na última sexta-feira, 31 de Outubro, dia em que se prestou uma singela homenagem ao Professor José Bento (1951-2014), membro do Clube de Leitura da mesma Biblioteca Municipal, e que nos deixou órfãos no corrente ano – «À volta da mesa seremos sempre dezoito», numa alusão clara à memória de José Bento, como um dos dezoito membros do Clube de Leitura, num texto escrito e lido por Carlos Ponte: (…) E quando a fome e o cansaço nos vencerem, sentámo-nos à mesa. E no fim, os dezoito, porque à volta da mesa seremos sempre dezoito, de pé, com o melhor vinho ribeiro das fráguas galegas, brindaremos à amizade que nos une, à vida e aos livros –, o convidado foi o escritor Manuel Jorge Marmelo, nascido na cidade do Porto em 1971. Jornalista deste 1989, estreou-se na literatura em 1996, com o livro «O Homem Que Julgou Morrer de Amor». Com mais de vinte títulos publicados, a sua criatividade literária passa pelos romances, crónicas, livros infantis e contos. Conquistou, em 2005, o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco com o livro «O Silêncio de um Homem Só» e, no corrente ano (2014), foi galardoado com Prémio Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa, pelo romance «Uma Mentira Mil Vezes Repetida». Manuel Jorge Marmelo tem participado em várias publicações e antologias, e, desde Julho de 2001, o seu nome consta do “Dicionário de Personalidades Portuenses do Século XX”, da Porto Editora, sendo o mais jovem dos nomes biografados.


Naquele dia, o mote para dois dedos de conversa foi o seu mais recente romance «O Tempo Morto é Um Bom Lugar» onde, segundo a crítica, se misturam vários géneros literários, desde o policial à autobiografia, rejeitando-se uma ligação umbilical a qualquer um deles. É um livro feito de pontas soltas, dividido em três partes, onde o leitor tem o papel decisivo de deslindar os mistérios que surgem nas suas páginas e que são, felizmente, muitos.
Sem nos enredarmos em grandes considerações crítico-literárias, dado que não é esse o nosso propósito, apenas diremos que o trama deste extraordinário livro gira à volta de Herculano Vermelho, um jornalista desempregado que um dia acorda ao lado do cadáver de Soraya, «uma inquietação com pernas» e estrela televisiva de um qualquer reality show, de quem aceitou tornar-se ghost writer para escrever uma autobiografia. Herculano não tem memória de nada, mas entrega-se à polícia como se a ida para a prisão fosse um desígnio pessoal a cumprir, vivendo o tempo morto da prisão com uma grande dose de alegria, num lugar onde não há contas para pagar, não existem apresentações periódicas obrigatórias no centro de emprego e não se sentem pressões de qualquer espécie de uma ex-mulher que, ainda assim, sempre mostrou ter paciência de santa. É ele – será mesmo? – que nos conta, na primeira pessoa, o primeiro andamento do livro: Antes de ter ficado desempregado não costumava lembrar-me do que acontecia nos sonhos, ou então, é o mais certo, tinha outras coisas em que pensar e acabava por esquecê-los sem lhes atribuir qualquer importância (p. 45) …Egoísta e indiferente a quase tudo, assalta-me frequentemente a ideia, agora não tão absurda quanto isso, de que posso transformar-me – enquanto envelheço, ou quando sair da prisão, que não há-de durar para sempre – numa daquelas pessoas que morrem solitárias e rodeadas apenas pelo silêncio dos seus gatos (p. 49). É na prisão que a sua avaliação psiquiátrica é inconclusiva e que conclui que o país está endividado e dependente de ajuda externa para pagar as quantias absurdas de fundos públicos, transferidos para os bolsos de empresas, consórcios e fundações assessoradas por advogados e economistas, messias que nos garantiam estar a agir no melhor interesse dos cidadãos. É este o recluso que se sente incapaz de reconstruir o fio das conversas com a Soraya, numa dicotomia entre a memória e a imaginação, com noites de atormentadas insónias, impressas a giz no quadro negro de lousa ou a esferográfica Bic: Quando durmo mal, o que acontece quase sempre, desperto muito cedo no silêncio duro da minha cela e fico a lembrar-me da crioulinha (p. 65). Um paralelo entre o desempregado e o presidiário? – uma interrogação que colocamos, a pretexto de eventuais detectáveis alegorias filosóficas.


A segunda parte é a surpreendente autobiografia de Soraya, um relato fantasmagórico de um narrador não identificado, que nos conta a breve história de ascensão e queda de uma linda mulher que, por detrás de um belo corpinho, esconde muito mais do que a aparente futilidade: Todas as minhas recordações de infância são imprecisas. Nelas a terra tem um tom entre o castanho e o cinzento, áspero, que se infiltra e contamina as memórias que me restam. Tudo o que me lembro está submerso no sépia suave daquele pó de ilha nua (p. 140); Estar na televisão assemelha-se a mudar de país (p. 143); Agora que penso nisso, é irónico que a Maria tenha sido a única a quem a escola serviu para alguma coisa. Tirou o curso de advogada e tem um emprego num banco (p. 147) – sentido estético de uma ironia refinada, que Manuel Jorge Marmelo nos leva a uma escrita criativa da mais apurada mestria, onde, no dizer de Ana Dias Ferreira, se pressentem jogos literários e artifícios que permitem elevar tudo acima da mundanidade: Máscara por cima de máscara, até à terceira parte em que se desmonta tudo, Manuel Jorge Marmelo constrói um romance que dinamita a noção de verdade e que confirma: nem ele é um fantasma sem voz própria, nem o prémio atribuído nas Correntes d'Escritas foi uma aparição.
De facto, a terceira parte pertence a João António Abelha, um jornalista veterano que, um ano depois da morte de Soraya e com as montras repletas de exemplares de “O Segredo de Soraya”, decide investigar por conta própria quem terá sido o autor da fotografia da capa e, em última instância, quem será, afinal, o autor do próprio livro: A seguir, e sem que isso tenha surpreendido minimamente João António Abelha, Soraya e Naninha fundiram-se num só corpo no momento em que iam cruzar-se no centro do ringue, dando origem a uma única mulher muito bela e doce, um pouco tímida, que vestia um fato de banho quase infantil, preto e estampado com cerejas (p. 274-275). E por aqui nos ficamos… O resto, é com os necessários e/ou hipotéticos leitores de Manuel Jorge Marmelo. Um autor que se recomenda.

NOTA MÁXIMA!   

Friday, October 31, 2014

Alma, movimento ou princípio de vida?!...

«…É, por conseguinte, impossível que a alma possa ser movida, constituindo isto um facto que claramente transparece daquilo que anteriormente se referiu. Contudo, é necessário que ela seja absolutamente subtraída ao movimento, em virtude de ser evidente não poder a alma saber mover-se a si própria.»

Aristóteles

Alma é um termo que deriva do latim Anima, que o mesmo será dizer princípio que dá movimento ao que é vivo, o que é animado ou o que faz mover. De Anima, derivam diversas palavras tais como: animal (em latim, animalia), animador, etc. Antes de Platão, por exemplo, muitas foram as especulações à volta da ideia de alma, cuja complexidade dessas mesmas especulações levaria esse mesmo filósofo a defender um dualismo quase radical do corpo e da alma. Há quem afirme que Platão absorveu o então constituído complexo de especulações sobre a ideia de alma, acabando por o «purificar». De facto, até ali, o domínio das concepções populares, sobretudo até ao final da cultura antiga, representava a alma como um morto (sombra que desce ao seio da terra); “como um alento ou princípio de vida; como realidade aérea que vagueia em redor dos vivos e se manifesta sob a forma de forças e acções, etc.” – citamos Ferrater Mora, representações essas a que não ficaram alheios alguns dos pensadores da cultura antiga, e de que damos exemplo através da “noção homérica da psyche ou alma-sopro vital como uma imagem insubstancial do corpo, a que dá vida e ao qual sobrevive numa existência miserável e exangue no Hades”. Outro dos exemplos vem-nos de Pitágoras, possivelmente o primeiro grego a encarar explicitamente a alma como algo de moralmente importante. Por fim, chegamos a Heraclito, apontado como o primeiro a mostrar com clareza a relevância que o conhecimento da alma tinha para o conhecimento da estrutura dos cosmos. Assim, poderemos afirmar que o conceito da “imortalidade da alma” é muito antigo, sendo que as suas raízes remontam ao princípio da história humana.
Filosófica e religiosamente, nos tempos que correm, a alma é definida como a parte espiritual do homem, que se julga continuar viva após a morte do corpo, podendo o seu destino ser a beatitude celestial, uma temporada no purgatório ou o tormento eterno. Segundo este ponto de vista, a morte é considerada como a passagem da alma para a vida eterna, no domínio espiritual. Santo Agostinho, por exemplo, quando confrontado com a realidade factual da mortalidade do homem, questionou a simultaneidade desse mesmo homem ser feliz e mortal, pelo facto de muitos negarem ao homem a capacidade de ser feliz enquanto vive sujeito à mortalidade. É nesta expectativa que a grande maioria das religiões, cristãs e não-cristãs, concorda em linhas gerais com a definição da alma como imortal. O hinduísmo, por exemplo, crê na transmigração da alma (princípio individual – atman) ao contrário do budismo, que não crê numa alma como é entendida no ocidente, mas somente numa sequência de um momento de aparecimento que dá origem ao seguinte, de forma que a morte representa simplesmente uma nova forma de aparecimento, como ser humano ou animal, no céu ou no inferno. Por isso, no budismo, fala-se de renascimento e não de reencarnação.


Alma, movimento ou princípio de vida? Esta pertinente interrogação coloca-nos outras tantas interrogações, tendo em conta que ao falar-se do conceito de alma não podemos desassociar-lhe o sentido material da realidade corpórea. Como diria Ferrater Mora: o sentido da unidade do corpo e da alma é a relação de uma actualidade com uma potencialidade. Contudo, e em função do enquadramento do conceito de alma ou psyché – ou mito da alma – no âmbito da ontologia, poderemos afirmar que estes conceitos sofreram, ao longo da história do pensamento, constantes transformações. Não é por acaso que muitos são os autores a afirmar que a questão da existência e da natureza da alma humana constitui – principalmente, para nós hoje – uma das questões mais debatidas pelos autores que desenvolvem a perspectiva filosófica das ciências cognitivas. O “momento-chave” do pensamento disjuntivo, assente no dualismo ontológico, fundamenta-se na reminiscência, sendo que esta leva à “fuga do mundo”. Esta forma surpreendente do pensamento, ao contrário da interpretação meramente moral, apresenta-se-nos com uma significação que vai muito para além dessa mesma moralidade. A partir do momento que a “verdade” não é deste mundo – mas do “mundo das ideias” –, que não reside no sensível e nas suas aparências, ela é ontológica.
A questão ontológica, posta em relevo por Parménides – para quem o ser era o fundo ontológico dos fenómenos –, adquire com Platão e com Aristóteles o estatuto de ciência filosófica fundamental. Através de Aristóteles, com a sua Metafísica, abriu-se e fixou-se os caminhos da Filosofia como Ontologia, até que com Descartes, a reflexão se orientou não tanto para a questão do ser como para a questão do saber acerca do ser. Segundo Celestino Pires, na perspectiva da Ontologia – do ente enquanto ente – há uma procura de saber o que é o ser, com base no ente real (aquele que exerce o acto de ser) e não no ente em sentido nominal, comum ao existente e ao possível. Por isso, o conceito de alma, ao assentar nesse dualismo ontológico e ao admitirmos que os diversos tipos de alma – vegetativa, animal, humana –, defendidos por Aristóteles, são diversos tipos de função, facilmente poderemos concluir que as «partes» da alma em cada um destes tipos de função constituem outros tantos modos de operação. Seguindo o raciocínio de Ferrater Mora, no caso concreto da alma humana, o modo de operação principal é o racional, que distingue esta alma de outras no reino orgânico: Isso não significa que não haja nessa alma outras operações. Pode-se falar da parte nutritiva, sensitiva, imaginativa e apetitiva da alma, ou seja de outras tantas operações. Mediante as operações da alma, especialmente da sensível e da pensante, a alma pode reflectir todas as coisas, já que todas são sensíveis ou pensáveis e isso faz que, como diz Aristóteles numa fórmula muito comentada, a alma seja de certo modo de todas as coisas.

Ao especularmos a relação entre o ser e os entes; o saber acerca do ser; a questão das linhas do tempo e do ser; a constatação de que o conhecimento vem sobre aquilo que se realiza; a “verdade” não é deste mundo – mas do “mundo das ideias”; e a alma humana, cujo modo de operação principal é o racional, por certo que nos confrontamos com a dimensão ontológica.

Friday, October 24, 2014

Padre António Vieira e a influência sobre o pensamento de Fernando Pessoa e Agostinho da Silva!...

«Quem despender em banalidades de linguagem a quinta-essência do seu talento, ou ostentar em cambiantes de estilo e formas opalinas de romance os mais rútilos lampejos da sua inteligência, a esse sim, a esse é que no conceito moderno são decretadas as honras e concedidos os foros de verdadeiro orador!»

Padre Gonçalo Alves

Mesmo que nos deixemos levar pela riqueza da oratória sacra e de vernácula, é sempre difícil interpretar qualquer um dos sermões do Padre António Vieira, aquele a quem Fernando Pessoa deu o epíteto de «Imperador da Língua Portuguesa». Tal como escreveria um dia o Padre Gonçalo Alves, em prefácio ao Tomo I das Obras Completas deste insigne pregador, nem antes nem depois do Padre António Vieira, a eloquência sagrada culminou mais triunfantemente nos púlpitos do nosso país. E quando recorremos à “alegoria” do Espírito Santo, lembrar-nos-emos da forma como o Padre António Vieira influenciaria o pensamento de Fernando Pessoa e consequentemente, pela empatia, o de Agostinho da Silva. O Padre António Vieira, ao exortar os futuros missionários a deixarem os «estudos da Europa» pela «escola do Céu», onde só o Espírito Santo é mestre e outorgador das graduações que não se dão «na Baía, nem em Coimbra, nem em Salamanca, senão nas aldeias de palha, nos desertos dos sertões, nos bosques das gentilidades», romperia com as tradições escolásticas tardias onde havia sido educado, sendo que, em face desta “convicção”, a dialéctica abstracta não o seduziria. Consta-se mesmo que ele, aquando estudante, chegou a redigir um compêndio de Filos e outro de Teologia, para uso pessoal.
Há nos sermões do Padre António Vieira – e o Sermão da Sexagésima (VII) não foge à regra – uma evidente multiplicidade de conhecimentos, que facilmente se descobre nos subsídios tanto sagrados como profanos que “adornam” esses mesmos sermões. Tal como um dia escreveria Francisco Freire de Carvalho, nos sermões do Padre António Vieira se deixa ver «uma frase pura, uma imaginação fecunda em pensamentos novos, variados, vigorosos, enérgicos, pinturas vivas, descrições brilhantes, posto que muitas vezes todo este aparato de riqueza oratória seja empregado em subtilizar e provar com pouco acerto, em sustentar e engrandecer uma maneira de pensar que lhe particularíssima e na qual imita o corruptor da eloquência romana, o filósofo Sécena; donde resulta que, devendo o Padre António Vieira ser havido por um dos mais perfeitos mestres da pura e bela locução portuguesa, não assim deve ser acolhido às cegas, e sem grande crítica, para modelo de sã e verdadeira eloquência». Daí, como afirmara Eça de Queirós, os seus sermões ter encantado a gente inculta do Brasil, mas também a casta requintada dos prelados de Roma.


O engenho subtil e penetrante que possuía, fez dele homem singular e extraordinário. Propugnador da liberdade dos índios acentuou nos seus sermões uma espécie de campanha contra os abusos de exploradores, aliás, atitude que, circunstancialmente, originou contra ele caluniosas agressões. A opulência universal da língua pátria, face à alteza do pensamento filosófico, tem nele – por afirmação de alguns outros pensadores –, a par de Luís de Camões, a máxima glória literária de Portugal.
Voltando ao sermão, e tomando como alegoria os Apóstolos pescadores de homens, sentimos na linguagem argumentativa do Padre António Vieira uma demonstração e/ou raciocínio rigoroso, numa ascensão do sensível para o inteligível (Platão). A lógica formal (Escolástica) é ultrapassada pela Dialéctica, aquela que Pedro da Fonseca soube afirmar como émula da Metafísica. A ciência de princípios, como inventário sistemático de todos os conhecimentos provenientes da razão pura ou doutrina da essência das coisas, é ultrapassada pela arte de raciocinar. E isso se constata neste sermão do Padre António Vieira: A pregação tem umas cousas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves, e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça. As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.
Com isto, o Padre António Vieira procura abrir ao entendimento da pessoa em si, enquanto ser individual, construtor das suas próprias redes, e, parafraseando Paulo Borges, no seu grande tema “adunam-se numa muito livre exegese a apocalíptica arcaica e judaico-cristã, a patrística da renovação da criação e do conhecimento temporal do Corpo Místico de Cristo, e as múltiplas formas das escatologias suas contemporâneas, acentuando a dimensão terrena do Reino de Deus, por vezes explicitamente filiadas em Joaquim de Flora e no joaquimismo”. Ainda segundo Paulo Borges, o Padre António Vieira é exemplo vivo de homem total e do universalismo português («Para nascer, Portugal. Para morrer, todo o mundo»), sendo que a sua vida e a sua obra formam uma unidade onde o pensamento não detém a maior parte.
Tal como afirmara Pedro da Fonseca “os universais são por nós conhecidos a partir dos singulares, em que existem, por abstração ou certa separação, não todavia real, mas de razão e de consideração ”, também o Padre António Vieira, ao abraçar as missões excluiria as carreiras académicas, pelo facto dos muitos anos que aí gravitasse, segundo ele, perder-se-iam incontáveis almas. A universalidade a partir do singular manifesta-se na singularidade, ainda que universal, do Espírito Santo: Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais.
Conhecer o Padre António Vieira é conhecer os seus sermões. Segundo o Padre Gonçalo Alves, só lendo os seus sermões é que podemos avaliar e compreender “a desmesurada proporção que atingia o vulto sublime da sua imensa glória, quando os auditórios fremiam e palpitavam ansiosos sob a influência magnética do seu verbo, os seus olhos fuzilavam relâmpagos de paixão, no seu gesto passava o raio que fulmina e a majestade que se impõe e a sua fronte rebrilhava circuncingida com essa divina auréola fulgentíssima que depois do ciclo ateniense, cingiu e iluminou a cabeça de Agostinho, a cabeça de Crisóstomo e poucas mais no mundo”.
Através da leitura deste sermão concluímos que o Padre António Vieira rompe assim com as regras predefinidas que “obrigava” à pregação das normas teológicas, para se manifestar pela defesa dos valores e princípios permanentes de uma doutrina social da Igreja. No fundo, o Espírito Santo acaba por funcionar como a forma de iluminar a – ou a iluminura da – realidade com que o Padre António Vieira se expressa, apostando, de uma forma clara, na filosofia das pessoas. Põe de lado a retórica e as ideias desencarnadas, para apostar na filosofia da vida: Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois porque na cabeça e não boca que é o lugar da língua? Porque o que há-de dizer o pregador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca, pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento.
         Padre António Vieira, Primus inter pares, diremos nós!

Friday, October 17, 2014

Os rituais seculares ou definição de “ritual” revisitada!...

«Meu método é assim necessariamente o inverso daquele de inúmeros estudiosos que começam por extrair a cosmologia que frequentemente se expressa em termos de ciclos mitológicos e, então, passam a explicar rituais específicos como exemplos ou expressões de “modelos estruturais” que encontraram nos mitos»

Victor W. Turner

Na nossa crónica de hoje iremos abordar os rituais seculares como uma emanação do colectivo. De facto, quando no tempo presente se questiona a secularização das chamadas festas tradicionais, temos que ter em linha de conta que as mesmas, apesar de eventualmente terem perdido a sua essência – no que diz respeito à ritualização e/ou ao sagrado – face à sua inevitável inovação, assumem um forte pendor profano e passam da sua essência ritual e sagrada para o “estádio” de lazer. Contudo, há festas tradicionais que conservam o seu pendor ritual, de que são exemplo as festas por altura do Natal e da Páscoa, sendo que esta última se sobrepõe ao melancólico e triste dia dos Fiéis Defuntos. O antagonismo reside, precisamente, na ancestral manifestação “espiritual/religiosa” da morte e ressurreição. Outro facto a reter são as festas tradicionais, muitas vezes carregadas de um forte simbolismo, revelado por práticas ancestrais de culto e de fé, e de que são exemplo, principalmente, aquelas em que se comemoram santos padroeiros.    
Um “ritual secular”, que encerra uma sacralidade intensa, fortemente inspirada na fé, é o culto da água, revisitado no baptismo e no “banho santo”, de que tomaremos como exemplo a festa anual de S. Bartolomeu, padroeiro da freguesia de Mar, concelho de Esposende, distrito de Braga. Aqui, expressamo-nos no permanente conflito com aquilo que nos é menos agradável reiterando esse sentimento na visualização e personificação do “demo”. S. Bartolomeu, apóstolo que foi de Cristo, aparece ligado à evangelização na Licaónia, na Índia e, de uma forma particular, na Arménia, onde viria a ser martirizado, esfolado vivo. Embora não haja muitas certezas quanto ao martírio e às suas deambulações geográficas, iconograficamente é representado com uma faca (ou tridente, porque retirado ao “diabo”) numa das mãos, com a sua pele noutra e o “diabo” acorrentado aos pés. Geralmente o “demo” é representado com cabeça de cão, corpo de homem e rabo de peixe. Esta forma singela de o representar é que levou à tradição de se afirmar que no dia de S. Bartolomeu o “diabo anda à solta”.


S. Miguel e S. Bartolomeu, por exemplo, desempenham um papel importante em termos de “rituais seculares”. Ambos lutaram contra o lado oculto e tenebroso da guerra, da tortura e da perseguição, plasmado na denominada figura do “diabo”. S. Miguel, por exemplo, anda associado às colheitas dos frutos e sementeiras e S. Bartolomeu marca o início das colheitas. Na capela de S. João d’Arga, esse pequeno e deslumbrante santuário implantado no sopé do cabeço da Arga de S. João, Caminha, e onde proliferam lendas maravilhosas – das quais destacamos a do Santo Aginha –, existe uma imagem de S. Miguel Arcanjo com o demónio a seus pés, apontando-lhe uma lança serrilhada. Este demónio tem cabeça de cão e corpo de homem, mas dos seus dedos saem afiadas garras.
Como nos foi dado constatar, no dia das festividades em honra de S. Bartolomeu (Mar), a nostalgia festiva, ainda que passiva de algum cunho manifestamente cultural, impulsionador à participação e exaltação colectivas, leva a que milhares de pessoas comecem a afluir à Igreja do apóstolo mártir e por três vezes passem por baixo do seu andor, como que simulando um regresso ao ventre materno. Por três vezes dão também voltas à Igreja, no sentido contrário ao do movimento dos ponteiros do relógio. Crianças e adultos de mãos dadas transportam frangos (sobretudo negros ou pedreses – mas também os haviam de outra cor) envoltos em saca, de plástico, com apenas a cabeça de fora, que alugam numa pequena e improvisada “capoeira” instalada ao lado esquerdo do templo. Outros trazem-nos de casa, engalanados numa cestinha de vime. A secularização da festa de S. Bartolomeu reside, precisamente, no “Banho Santo”.
Dos seis “banhos santos” que existiram em Portugal, apenas este é que subsiste. Ordinariamente, a festa de S. Bartolomeu está sempre ligada à água. Por isso aparece sempre junto aos rios, a nascentes ou ao mar. Tudo resulta de factores naturais. Isto era uma romaria antiga e todos os dias os romeiros iam ao mar. Como, normalmente, a romaria tem a duração de nove dias (novena), daí resulta o número ímpar. Depois, quem não podia vir à romaria vinha num fim-de-semana.
Segundo Jean Maisonneuve, ao referir-se a um inquérito europeu consagrado aos “valores do tempo presente”, elaborado e sintetizado sob a orientação de J. Stoetzel, alerta-nos para o facto de que o mesmo estudo introduz diversos elementos globais e específicos respeitantes às atitudes religiosas – mais do que se refere às crenças do que às práticas. Verifica-se em primeiro lugar que mais de 60% das pessoas inquiridas (numa amostra que incide em nove países) afirmam possuir uma “certa religião” e mantêm – digam-se elas crestes ou descrentes – valores judeu-cristãos sem disso terem sempre uma nítida consciência. Daí, ser compreensível toda essa apreensão, dado que muitas são as interpretações e as conveniências emocionais. O frango, por exemplo, e segundo a opinião do antigo pároco da freguesia de Mar, nosso particular amigo Carlindo Martins Vieira, funcionava como um corolário de oferta ao santo. A não ser que, à razão da prática de o povo oferecer aquilo que tinha em casa, se sobreponha a extra-sensorial simbologia da decapitação e do esfolamento como renovação, pelo sangue derramado. Mas, não é previsível ir-se por aí. Infelizmente, nos últimos tempos, isto tem sido indecentemente explorado, principalmente por pessoas que não estudam este fenómeno convenientemente e de uma forma séria, a ponto de classificarem isto como uma frustração e um desmoralizante paganismo.
Convém salientar, e para terminar, que o culto a S. Bartolomeu perde-se no tempo, encontrando-se vários elementos nesta festividade que nos reportam ao pré-cristianismo, através da água como símbolo da purificação, e ao cristianismo, através do baptismo, em muito associado à purificação. E como é inevitável, aparece sempre um pouco de superstição. Mais que não seja, o culto a S. Bartolomeu teima em continuar a existir até para conservar o culto da água, um dos elementos essenciais à própria vida.
 Circunstancialmente, Claude Rivière alerta-nos para esta natural apetência do sobrenatural e misterioso, quando afirma que esta sagração, ambientalmente pura ou impura, não será por aí que a hipóstase da força colectiva do corpus social e o rito, constituirão pois uma expressão simbólica dos valores fundamentais que unificam os membros de uma sociedade. Segundo ele, tal comportamento se manifesta pela acção de fazer transbordar o religioso para uma noção mais vasta do sagrado, indicando a sociedade como fonte dessa mesma sacralidade. Ainda a propósito do culto a S. Bartolomeu, Franquelim Neiva Soares, professor jubilado da Universidade do Minho, quando, em resposta aos detractores e vilipendiadores do sentimento e devoção populares, alertara para a remota possibilidade da morte desta romaria tendo como causa-efeito o materialismo crescente, o sensualismo desavergonhado e a perda paulatina do sentimento religioso. E, para que isso não venha a acontecer, sugerira um melhor esclarecimento e mais positiva orientação; o que urge mais, e quanto antes, é a catequização positiva e persistente do nosso povo, ainda crente e bom, mas com uma ignorância que brada aos céus.
      Ignorância ou não, acabamos por constatar, in loco, que algo extraordinariamente emocional levava a que aquela gente se revisse no ancestral culto da água.

Saturday, October 11, 2014

A expiação da injustiça em Anaximandro!...

«1. Tudo se dissipa nisso de onde provém, e todas as coisas se dissipam em virtude do grau de culpabilidade, porque retribuem umas às outras o castigo e a expiação pelas injustiças, consoante o tempo determina. / 2. O ilimitado (apeiron) é eterno. / 3. O ilimitado é imortal e indissolúvel.»

Fragmentos de Anaximandro
In GOMES, Pinharanda – Filosofia Pré-Socrática. p. 126.

Anaximandro [N. Mileto, c. 610 – m. 546 a.C.], filósofo grego, sucessor de Tales na direcção da Escola de Mileto, criador do conceito de apeiron (άπειρου), cujo significado, levado à letra, nos aponta para o infinito, “não no sentido matemático, mas no de ilimitação ou indeterminação”, insere-se na conexão do nascimento da filosofia naturalista e que, sendo tomado como exemplo, é apontado por Werner Jaeger como a figura mais imponente dos físicos milesianos. José Nunes Carreira vai mais longe, ao vincular Anaximandro à criação da noção do cosmos, quando afirma uma ordem das coisas correspondente à que existe entre os homens: «donde advém a origem ao ser, no mesmo sentido vai o acaso, segundo as determinações do destino; pois um ao outro deve pagar castigo e pena, de acordo com a sentença do tempo».
A tradição atribui a Anaximandro a autoria de um livro com o título padrão Sobre a Natureza (c. 547 a.C.), a construção de um mapa-mundo, de uma carta celeste, de um modelo esférico para representar os corpos celestes, o primeiro a descobrir o equinócio e os solstícios e a introduzir o gnómon – já conhecido na Babilónia – na Grécia, mas o que chegou até nós é indirecto e fragmentário. Referimo-nos ao fragmento – no fundo, uma reconstrução de um texto tardio – que se revelou no que há de mais enigmático na filosofia grega. G. S. Kirk dá-nos conta que parte da informação fornecida por Teofrasto sobre a matéria originadora de Anaximandro encontra-se em Simplício. No entanto, ainda hoje se discute se o mesmo recebeu estes e outros extractos doxográficos semelhantes directamente de uma versão de Teofrasto, ou por intermédio do comentário de Alexandre, hoje perdido sobre a Física.
Luciano Crescenzo define Anaximandro através dos seus fragmentos, cuja interpretação “deve ter colocado em apuros mais que um historiador de filosofia”, como aquele que concebeu os elementos como deuses sempre prontos a atacar os seus opostos: o Calor gostaria de dominar o Frio, o Seco gostaria de dominar o Húmido e vice-versa, mas a necessidade domina-os a todos e impõe-lhes que certas proporções permaneçam inalteráveis. E aqui, se nos referimos ou aludimos à justiça, teremos que entender apenas o respeito pelos limites estabelecidos, o ver mais longe do que um simples equilíbrio entre elementos diferentes, como a «necessidade» e a «expiação», revelando no seu pensamento o desejo místico de uma ordem suprema. Disso nos dá testemunho Plutarco, quando descreve a visão do filósofo da escola Mileto, acerca do nascimento do Universo: «Ele afirma que do Eterno se separaram o calor e o frio e que uma esfera de fogo se espalhou em torno do ar que envolvia a Terra como a cortiça envolve a árvore; depois, a esfera partiu-se e separou-se em círculos e assim se formaram o Sol, a Lua e os astros».


Não é por acaso que para Werner Jaeger, a concepção da Terra e do mundo em Anaximandro é uma vitória do espírito geométrico. Segundo o mesmo autor, o mundo de Anaximandro é construído segundo rigorosas proporções matemáticas. Num dos relatos de Teofrasto, atribuído a Hipólito, afirma-se que o filósofo de Mileto dizia que o princípio material das coisas que existem era uma natureza do apeiron, de que provêm os céus e o mundo neles contidos e, esta natureza, para além de envolver todos os mundos, é eterna e não envelhece. Daí, concluirmos que há uma pluralidade de inúmeros mundos coexistentes, e a fonte da geração das coisas – citando Simplício – que existem é aquela em que se verifica também a destruição «segundo a necessidade; pois pagam o castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do Tempo».
Um facto curioso é que José Trindade dos Santos ao referir-se aos filósofos Milénios, dá-os como os iniciadores da reflexão filosófica na Grécia, mas, sempre vai dizendo que de Tales, de Anaximandro, ou de Anaxímenes não nos chegou qualquer texto, com a possível excepção de um fragmento atribuído a Anaximandro. No entanto, a importância destes pensadores é inegável e universalmente reconhecida por todos os estudiosos da tradição reflexiva grega, nomeadamente por Aristóteles, quando a eles se refere, englobando-os no grupo dos «primeiros filósofos», com a denominação de «físicos» ou «fisiólogos».
  Embora muitos autores afirmem que do pouco que resta do pensamento de Anaximandro nos impede de saber, de um modo certo e objectivo, o que realmente pretendeu teorizar – ou dizer –, fica-nos a sensação de uma concepção pré-científica do mundo. Para Copleston, a doutrina de Anaximandro supõe um avanço em relação à doutrina do seu antecessor, Tales, que ao superar a designação de um elemento determinado como primordial, chega a conceber um infinito indeterminado, de que provêm todas as coisas, permitindo, ainda, pelo menos responder de algum modo à velha questão de como o mundo evolui a partir daquele «elemento primeiro».
Uma sugestão para os pseudo-divinizados (quiçá, até na política) deste jardim à beira-mar plantado: Leiam um pouco dos fragmentos de Anaximandro e talvez cheguem à conclusão que ele não confere qualquer lugar às divindades dos mitos, dado que tende apenas a humanizar o seu apeiron, a fim de explicar a ordem do mundo. Daí, o princípio devia estar para lá de toda a realidade observável e limitada, pois o apeiron sendo indeterminado é infinito na duração, imortal e indestrutível, em movimento perpétuo, sem ser infinitamente criador, nem infinito no espaço, revelando-se numa espécie de enorme massa matricial que nela engendra o mundo (cosmos) e o «orienta», o governa divinamente.

Não devemos ficar só pelo De audito!