Monday, March 17, 2014

Vontade e Liberdade: o saudável “confronto” entre René Descartes e António Damásio

“Ainda que Deus não nos tenha dotado com um entendimento omnisciente, nem por isso devemos pensar que é o autor dos nossos erros, pois todo o entendimento criado é finito, e é próprio da natureza do entendimento finito não ser omnisciente”

René Descartes

Quando a maioria dos filósofos defendia que as verdades da lógica, embora dependentes da essência de Deus, eram inteiramente independentes do próprio Deus, René Descartes, de uma forma inovadora, faria depender as verdades da lógica e da matemática da vontade d’Ele. Seria assim o primeiro a fazer do mundo da matemática uma criatura separada, dependente, tal como o mundo físico, da vontade soberana de Deus. O sinal de alguma controvérsia encontramo-lo numa carta que o mesmo filósofo francês escreveu, em 1630, a Marin Mersenne: “As verdades matemáticas a que chamais eternas foram estabelecidas por Deus e dependem tanto d’Ele como o resto das suas criaturas. De facto, dizer que estas verdades são independentes de Deus é falar d’Ele como se fosse Júpiter ou Saturno, e submetê-Lo à Estinge ou às Parcas. Não hesiteis, pois, em afirmar e proclamar por toda a parte que foi Deus quem estabeleceu estas leis na Natureza, da mesma maneira que um rei estabelece leis no seu reino [...] Deve dizer-se que se Deus estabeleceu estas verdades, pode alterá-las da mesma maneira que um rei altera as suas leis. A resposta a esta afirmação é: «Pode, sim, se a Sua vontade puder alterar-se.» «Mas eu reconheço que elas são eternas e imutáveis» – «Eu faço o mesmo juízo acerca de Deus» «Mas a Sua vontade é livre.» – «Sim, mas o Seu poder é incompreensível»”.
Com base no Método da Dúvida, método esse que levou até à exaustão, a famosa frase Descartes «cogito ergo sum» – «penso, logo existo» – acabaria por não corresponder efectivamente ao verdadeiro sentido do seu pensamento, já que nas Meditações, acabaria por a “corrigir” para «Eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeiro sempre que exposto por mim ou concebido na minha mente».


No sistema de Descartes, existe um mundo físico regido pelas leis deterministas da Natureza e um mundo mental da consciência solitária. Os seres humanos, ao serem compostos de corpo e mente, equilibram-se – segundo Anthony Kenny, desconfortavelmente – entre os dois mundos. Ao contrário da maior parte dos pensadores anteriores ao filósofo francês, em que os animais diferiam dos seres humanos pelo facto de não serem racionais – embora se assemelhassem pelo facto de possuírem a capacidade da sensação – para Descartes os animais irracionais não passavam de máquinas. Para ele, um animal não poderia ter uma dor, embora a máquina do seu corpo pudesse levá-lo a reagir de forma semelhante ao de um humano, manifestando uma expressão de dor: “Não descortino qualquer argumento que prove que os animais têm pensamentos, excepto o facto de, tendo ele olhos, ouvidos, línguas e outros órgãos sensoriais como os nossos, parece provável que tenham sensações como nós; e, estando o pensamento incluído no nosso modo de sensação, parece que lhes podemos atribuir pensamentos semelhantes. Este argumento que é muito óbvio, tomou posse da mente dos homens desde o começo. Mas há outros argumentos, mais fortes e mais numerosos, ainda que não óbvios para toda a gente, que insistem fortemente no contrário”. Segundo Anthony Kenny, esta doutrina não pareceu tão chocante aos contemporâneos de Descartes – cujo pensamento se estruturava em dois grandes princípios: o de que o homem é uma substância pensante e o de que a matéria é extensão em movimento –, mas alguns dos seus discípulos, “dissimularam” algum confronto, ao afirmaram que os seres humanos, tal como os animais, não passavam de máquinas complicadas.
Em jeito de conclusão diríamos que um dos aspectos principais do projecto e método em Descartes é a opção de usar a primeira pessoa no discurso. Ao usar a primeira pessoa nos seus textos, resulta no percurso que o levou a um caminho certo – mostrar o processo em vez dos resultados, como se chega ao conhecimento. Através da “árvore do conhecimento”, organização hierarquizada do conhecimento, cujo modelo do método é fornecido pela matemática – modelo imperativo de Descartes para reformar todo o conhecimento –, o mesmo apenas deve ser construído através da razão humana. Em suma, o mesmo filósofo propõe na tarefa de libertar a filosofia do cepticismo. A dúvida é apenas um instrumento em uso na investigação.
Daí, entendermos o cepticismo de António Damásio, quando no seu livro «O Erro de Descartes» leva-nos a concluir que os organismos humanos estão dotados, desde que nascem, de uma apaixonada inclinação para fazerem escolhas que a mente social utiliza para criar comportamentos racionais: Embora não possa dizer ao certo o que despertou o meu interesse pelas bases cerebrais da razão, sei sem qualquer dúvida quando fiquei convencido de que as ideias tradicionais sobre a natureza da racionalidade não poderiam estar correctas. Assim, na sua opinião, o facto de um dado organismo possuir uma mente significa que ele forma representações neurais que se podem tornar em imagens que são manipuladas num processo chamado pensamento, o qual acaba por influenciar o comportamento em virtude do auxílio que confere em termos de previsão do futuro, de planificação deste de acordo com essa previsão e da escolha da próxima acção. E, se calhar, embora alguns não a queiram dar, António Damásio tem alguma razão, pois, para ele, “a função global do cérebro é a de estar bem informado sobre o que se passa no resto do corpo (o corpo propriamente dito); sobre o que se passa em si próprio; e sobre o meio ambiente que rodeia o organismo de modo a que possam ser adquiridas acomodações de sobrevivência adequadas entre o organismo e o ambiente.”

Uma certeza se apreende de ambos, a Liberdade aumenta com o conhecimento, o que parece ser uma negação dos detentores do poder e da razão feita lei, nos tempos que correm. Precisamente, quando nos é dado saber que a ausência de emoções acaba por prejudicar a racionalidade! 

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