Friday, November 28, 2014

Viajando das «Outonias» aos «Poemas Tardios» com Domingos da Calçada!...

«Em “Outonias”, obra de poesia, publicada já no distante ano de 1988, Domingos da Calçada não se desterra da paisagem onde levanta o seu memorial, que é a sua aldeia-presépio de Durrães, rincão edénico onde se fez homem e poeta, do qual vive uma saudade antessentida e sofrida…»

Fernando Pinheiro

Já aqui uma vez escrevemos (Junho de 2013), a propósito de uma magnífica obra intitulada “Gente do Vale”, obra que premiaria a importância e a preponderância memorialista de Domingos da Calçada, um dos maiores – senão o maior – contistas que conhecemos até à presente data. Afirmamo-lo, na altura, com tal convicção, que não tememos a rotulação de uma presumível leviandade, que alguém nos pudesse imputar – tal a nossa estética convicção, da arte e literatura pelo gosto –, dado que já conhecemos os seus escritos há mais de trinta anos a esta parte, contextualmente tomada em boa conta, aquando da saída da obra de grande fôlego «Vale do Neiva: Subsídios monográficos» (1982), hoje uma raridade bibliográfica, onde Domingos da Calçada deixaria impressos seis magníficos trabalhos e um soneto. Esse soneto, qual “Senhor do Lírio” (…Agora, brilha ali bem mais escura / a luz que se desprende lá da altura / contra a muralha – ultraje do martírio / que dum recanto puro, abençoado, / sujou da mancha odiosa dum pecado / sem reparar, contra o Senhor do Lírio.) fazia antever a sensibilidade e a alma “Mater” de um poeta que, respirando, vivendo e sentindo, no dizer de Fernando Pinheiro, a sua “aldeia-presépio” de Durrães: Adoro-te, cantinho onde nasci, / jardim de virgens flores perfumadas, / sacrário aonde guardo as mais sagradas / recordações das horas que vivi! – citamos de «Outonias», p. 39, nos propõe em fazer desfilar “diante de nós na sua castiça espontaneidade, tão próprio do minhoto, e preenchem as suas cantantes parlengas com preciosos localismos que enchem a alma a quem gosta de ser seduzido pelas novidades semânticas e pela fantasia da linguagem”, paráfrase arrancada à nota introdutória ao brado poético «Poemas Tardios», magnanimamente assinada por Fernando Pinheiro, e com a qual corroboramos inteiramente.
Domingos da Calçada, pseudónimo literário – quiçá, de guerra – de Domingos de Castro Barbosa Maciel, nascido em Durrães, Barcelos, a 18 de Fevereiro de 1931, foi publicamente homenageado, em 4 de Julho do corrente ano, por altura da XXXII Feira do Livro de Barcelos, pela edilidade barcelense, na pessoa do seu presidente Miguel Costa Gomes, com o Grau Prata, Medalha de Mérito Cultural. Nesse mesmo dia, com a anuência da «Tertúlia Barcelense», foi dada à estampa «Poemas Tardios», pérola da poética regional, porque genuína, perfeita, sentida e saída do espelho da alma. Em segredo, numa cumplicidade assumida com o amigo comum, Mota Leite, já o havíamos lido em «Outonias» (conteúdo que, face à raridade, seria por nós fotocopiado e delicadamente encadernado). «Poemas Tardios», com dedicatória a preceito, ainda que exagerada nas suas deferentes considerações, admiração e estima, acaba por confirmar a nossa percepção, da elevadíssima dimensão de carácter, nobreza, humanismo e sensibilidade criativa em Domingos da Calçada: «Nascer Filho d’Algo ou pobre / que mais tem? Entendo eu / que na falta de Alma Nobre / até o mais nobre é plebeu…», porque «Há palácios brasonados / a atestar, na fidalguia / de ancestrais antepassados, / a mais torpe vilania – Verdade cirúrgica, ajustada à nossa condição de virmos todos ao mundo «à sombra do mesmo Fado: / – ladrão nobre, é porco imundo, / pobre sério, é Nobre e Honrado!» (p. 41).


«Poemas Tardios» é um magnífico livro de poesia, escrito por um não menos magnífico poeta – sim, não é poeta quem quer… –, porque, à boa maneira aristotélica, “encontra-se na epopeia e na tragédia e também na comédia e no ditirambo, bem como em grande parte na música da flauta e da cítara” (1441a 13-16): «Orgulho da minha Raça, / o Doce Rio, ao passar, / dando um ar da sua graça / nunca deixa de entoar / melodias de encantar, / como não consigo ouvir / em qualquer outro lugar / pois, este Rio, ao passar / no seu manso deslizar, / incapaz de se calar…» (p. 11), ou “realiza-se pelo ritmo, pela linguagem e pela melodia”, parecendo que «Poesia é virgindade, grito, anseio / de quem nasceu com alma inconformista / e grava doloroso historial, / burilando palavras escolhidas / e muito raramente compreendidas, / para compor estrofes / que são pedaços d’alma, a ressoar / em gritos de mudez interior / cristalizados no poema…» (p. 14) – simplesmente, sublime. Aqui, nestes «Poemas Tardios», a nosso modesto ver, não há temporalidades, porque da cinza reacendem-se primaveras, denunciando-se, ao mesmo tempo, falsos moralismos e hipocrisias, esses sim, intemporais: «Conheço ilustres senhores / que com toda a hipocrisia / se tornaram ditadores / a pregar democracia. / Há quem chame democratas / aos palhaços palradores, / que simulam as bravatas / engodando os eleitores…» (p. 26). E o Pavão expedito, que passa «a espenujar com jactância / o seu brio da distância / entre o zero e o infinito!» (p. 31), condimentado com o “cão rafeiro”, “camaleões” em trasmuda, “zaganeiros” (ratos enormes) de proa «da ladina rataria, / foram parar a Lisboa / aos cargos de Alta chefia.» (p. 36), e pessoas «em vaidosa presunção, / valem menos que a postura / ou a sombra do meu Cão / e, pensando nessa gente / embusteira, que conheço, / aumento ainda o apreço / pelo meu Cão da corrente!» (p. 37).
E porque seria despropositada a nossa suposta presunção de deambularmos de uma forma minuciosa pelo conteúdo desta maravilhosa poética, e porque achamos que a poesia não se explica (alheado ao facto de que não se pode inventar, o que inventado está), terminaremos citando o escritor-poeta e editor Fernando Pinheiro: “Ao longo de décadas, Domingos da Calçada foi coligindo histórias ouvidas directamente da boca do povo, para as fixar num registo literário que ultrapassa o plano da ficção propriamente dita, mercê do realismo com que estão impregnadas as personagens, as situações relatadas, os locais descritos. Quer isto dizer que a realidade não precisou de ser inventada, porque ela vive e permanece nas páginas das obras de Domingos da Calçada, e a sua representação simbólica permite ao leitor um emocionante com a experiência histórica de um povo que contra ventos e marés sofreu a canga da exploração, combateu as injustiças e lutou pelo seu progresso”. Subscrevemos inteiramente: «Da panóplia dos punhais / a embeber-me o coração / penetram muitos mais / os da pérfida traição!» (p. 38), sumula comportamental de uns tantos “Escariotes”, que “remordem de inveja / por eu ser quem quero ser / e não quem querem que eu seja!”. Assim é o saudável AREJO de Domingos da Calçada, escritor-cronista e poeta do Vale do Neiva, mas cidadão do aquém e além-mundo: «Ninguém como um poeta, sentirá / nos voos d’alma para além do aquém, / que o sonho vive lá, na zona etérea / e, para aquém do além, tudo é matéria» (p. 15). Matéria-prima, de alto quilate, diremos nós!   
          NOTA MÁXIMA!

Friday, November 21, 2014

«Biografia involuntária dos amantes», a procura do “Outro” em João Tordo!...

«Talvez João Tordo seja um escritor existencial, já que esta antiga palavra engloba simultaneamente os aspectos espirituais, sociais e materiais da realidade…»

Miguel Real

Recorrente da brilhante iniciativa da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, «À conversa com…», de trazer até nós um dos escritores portugueses (a par de outros, mas muito poucos…) com quem mais nos identificamos, João Tordo, eis que damos conta da nossa habitual empatia por tudo o que escreve, deixando-nos seduzir, mais uma (e desta) vez, pelo seu último romance «Biografia involuntária dos amantes».


Para os menos atentos, convenhamos em lembrar que João Tordo, aliado ao facto da circunstancial consanguinidade, por ser filho do cantor Fernando Tordo (sem que isso possa constituir qualquer tipo de condicionante ou sombra à sua excepcional e nata criatividade), nasceu na cidade das sete colinas, Olisipo de Tagus, em 28 de Agosto de 1975. Formou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e trabalhou como freelancer em vários jornais. Estudou Jornalismo e Escrita Criativa em Londres e Nova Iorque, onde viveu intensamente e cultivou a sua “memória selectiva”, como costuma dizer.  Foi vencedor do Prémio José Saramago 2009 com o romance «As Três Vidas» (2008) depois de, em 2001, ter vencido o prémio Jovens Criadores na categoria de Literatura. Foi finalista do prémio Melhor Livro de Ficção Narrativa da Sociedade Portuguesa de Autores em 2011 com o romance «O Bom Inverno» (2010), do Prémio Portugal Telecom 2011 com «As Três Vidas», publicado no Brasil, e ainda do Prémio Fernando Namora com «Anatomia dos Mártires». Trabalha como cronista, tradutor, formador em workshops de ficção dedicados à Escrita Criativa e ao Romance, e guionista, onde participou em várias séries de televisão, incluindo «O Segredo de Miguel Zuzarte» (RTP), «4» (RTP) e «Liberdade XXI» (RTP). Para além de ter participação em diversas antologias literárias, publicou sete romances, alguns dos quais estão traduzidos em diversos países, nomeadamente em França, Itália, Brasil, Sérvia e Croácia: «O Livro dos Homens Sem Luz» (2004), «Hotel Memória» (2007), «As Três Vidas» (2009), «O Bom Inverno» (2010), «Anatomia dos Mártires» (2011), «O Ano Sabático» (2013) e, finalmente, «Biografia involuntária dos amantes» (2014), livro esse que serviu de mote a mais dedos de conversa, na última sexta-feira, 14 de Novembro do corrente ano.


Em «Biografia involuntária dos amantes», tudo começa numa estrada (AP-9) adormecida da Galiza, onde dois homens atropelam um javali: Mas o animal atravessou-se no nosso caminho, correu para o desastre e destruiu o pára-choques do carro, projectando fragmentos de si próprio, satélites desgovernados em torno de dois sóis que eram as luzes dianteiras. O focinho bifurcado do mamífero explodiu de sangue… (p.13). “A visão do animal morto na estrada levará um deles — Saldaña Paris, um jovem poeta mexicano de olhos azuis inquietos — a puxar o primeiro fio do novelo da sua vida. Instigado pelas confissões desconjuntadas do poeta, o seu companheiro de viagem — um professor universitário divorciado — irá tentar descobrir o que está por trás da persistente melancolia de Saldaña Paris. A viagem de descoberta começa com a leitura de um manuscrito da autoria da ex-mulher do mexicano, Teresa, que morreu há pouco tempo e marcou a vida do poeta como um ferro em brasa. O narrador não poderia adivinhar (porque nunca podemos saber as verdadeiras consequências dos nossos actos) que a leitura desse manuscrito teria o mesmo efeito sobre a sua vida. As páginas escritas por Teresa revelam a sua adolescência no seio de uma família portuguesa contaminada pela desilusão: um pai ausente e alcoólico, um tio aventureiro e misterioso, uma mãe demasiado protectora” – podemos ler em sinopse.
João Tordo, é a primeira vez que tem uma narradora no feminino – Chamo-me Teresa de Sousa Inútil. O segundo apelido é inventado. Esta história que vou contar é sobre o meu tio e é também sobre mim, embora os narradores muitas vezes se escondem por trás de outras pessoas, como Alice se escondeu por trás de um espelho (p. 109) –, o que, na nossa modesta opinião, se reflecte numa tentativa do autor em passar para o outro lado do espelho, por forma a ultrapassar a dificuldade em compreender o ser humano do ponto de vista masculino. E é o próprio João Tordo que nos revela esse mesmo inquietante desafio, quando, numa entrevista a Luís Ricardo Duarte (JL), imprimiu o lado feminino, ao sentir uma grande intimidade com a Teresa: “A prosa engrenou (…). Há até alguns pormenores que saltam à vista. Essa parte tem uma linguagem diferente, uma cadência mais pausada, outra pontuação…” – corroboramos com as palavras do autor, porque foi isso que sentimos. Mesmo permitindo-se a correr riscos, João Tordo – quiçá, o Jaime de Teresa (Sei que o olhei com a certeza de que aquele rapaz gago, tímido e desajeitado seria o meu único amor verdadeiro. Nenhum de nós, até àquele dia, sequer provara uma cerveja ou um beijo) – arriscou em sair da sua zona de conforto. Intimidades femininas, são sempre intimidades femininas: A única pessoa a quem contei que o meu pai aparecera na televisão e no jornal foi a Julieta, a primeira rapariga da nossa turma a quem apareceu a menstruação. Na altura, era a minha única amiga. Eu detestava as raparigas. Odiava os risinhos de escárnio, desprezava os grupinhos, evitava as conversas no balneário do ginásio. No primeiro ano naquela escola, uma das nossas colegas descobriu um penso higiénico na mochila da Julieta (p. 121), em tempos em que se cheirava a pastilhas Gorila, a tabaco, a after-shave, a suor, a ranço, “a sexo (alguns cheiravam a sexo) e, pior do que todas essas coisas, a perfume”.  
“A vida adulta”, “o manuscrito de Bríon”, “o tempo peleja contra os seus lírios e as suas rosas”, “dezoito” – Guardei o manuscrito numa gaveta do quarto de Andrea e prometi não voltar a tocar-lhe. Supersticiosamente, tapei-o com a roupa de infância da minha filha, como se assim pudesse estancar o mal que aquelas páginas tinham feito (p. 225) –, “o eco dos fantasmas no papel”, “o grito dos velhos terrores”, e “a sombra dos nossos passos”, são percursos (capitulares), desvelando o passado, para que este não contamine irremediavelmente o futuro. A nosso ver, à semelhança do «Ano Sabático», João Tordo tenta perceber até que ponto é possível colocar-se no lugar do “Outro”, através de lugares e emoções comuns a qualquer um de nós. No fundo, uma viagem “filosófica”, onde “continuamos a procurar um sentido para as coisas; quão longa essa quimera, quão árduo esse caminho em busca de uma resposta. Talvez essa resposta seja como no sonho de Saldaña Paris: um lugar em que se flutua. Sim, é possível que seja isto: uma incógnita ou um sem-número de possibilidades, todas inatingíveis; a tal sístole poderosa que nos esmaga e depois nos dispara em todas as direcções até aos confins do espaço” (p. 415). Aqui fica o convite: «Agora entramos». Sim, a entrarem na «Biografia involuntária dos amantes», dado que há muito mais para revelar.
Um autor que se recomenda.  
         NOTA MÁXIMA!

Saturday, November 15, 2014

«Escritas desencarceradas» de Orlando Ferreira Barros!...

«…As macieiras da sua infância, ali mesmo à beirinha de casa, germinavam no silêncio retraído de um pomar abandonado, meio selvagem, dono sem-dono.»

Orlando Ferreira Barros

Tarde de 8 de Novembro (sábado), tarde profundamente emocional, a vivida na Sala Couto Viana da Biblioteca Pública Municipal de Viana do Castelo, com a grande responsabilidade, ainda que imerecida, de apresentarmos as quatro primeiras «Escritas desencarceradas» do excelso escritor vianense – porque, apesar de ter nascido em Leiria (1942), em 1969 emprenha-se de Viana do Castelo, onde, neste momento, acha que daqui nunca saiu. Vive feliz, na fronteira Meadela/Perre (numa solidão acompanhada), com a família e mais duas canadianas que juraram nunca abandoná-lo (as juras, mesmo as de amor, são para se cumprir) – ORLANDO FERREIRA BARROS: "Mater", "O Pedido da Velha Messalina", "O Delito de Octávio Bernardes" e "Visto-me para Desafiá-los".
Foi mais um dia em que preenchemos o espaço vazio, como vazia será a nossa vida sem os livros e a memória daqueles que, apesar de viverem noutras Galáxias, foram ali recordados pelo bom amigo Orlando Ferreira Barros, através da sua escrita e da sua memória (solum moritur homo qui oblitus est). Este SENHOR HOMEM, inspiração nossa em Marlene Ferraz e na titular comenda à inglesa, apanha as primeiras palmatoadas, aos seis anos de idade, por escrever “tecto” sem “c” e Primavera com minúscula; é chamado à polícia, em 1959, por causa dos seus textos da récita de finalistas; vai estudar para Lisboa em 1960 e, no ano seguinte, apaixona-se irremediavelmente (tal como a Espanca); em 1962 participa nas manifes universitárias e é preso com o Medeiros Ferreira e o “Cenoura” (Mais tarde veio a ser conhecido como Jorge Sampaio); em 1969 vem para Viana do Castelo; em 1972 nasce a sua filha loira; em 1973 começa a escrever a sério e recebe o seu primeiro prémio literário: Teatro Universitário do Porto; em 1988 nasce a sua filha morena; em 2010 deixou de ver os canais portugueses de TV; em 2011 nasce o seu neto macho; em 2012 nasce a sua neta fêmea; em 2013 fez as contas e somou seis prémios literários; em 2014 ganhou mais um prémio (vindo de além Atlântico) e continua a escrever, o que lhe dá sentido a vida; em 2026, segundo a previsão de uma cigana decifradora das linhas enigmáticas da palma da mão, parte para outra galáxia, lúcido e satisfeito porque a vida mereceu ser vivida.


Apesar de nos sentirmos demasiadamente pequeninos para falarmos deste grande escritor nosso, Orlando Ferreira Barros, quais vistinhas coladas “no duplo espelho para sentir a picada de asco contra mim próprio”, foi com o maior orgulho que resolvemos não resistir à “remordida maquinação”, potenciada por esse mesmo espelho, quando o bom amigo e MESTRE Orlando, no sentido escolástico de peripatéticos que somos, entendeu dar oportunidade a Miranda Rebôlo, aquele que (segundo um iluminado, erudito, cá do burgo de Atrium) escreve melhor que nós, para desencarcerar escritas suas em Mater poesia, a pedido da Velha Messalina, causa-efeito (suporte de transformação e transmissão de movimento) do Delito de Octávio Bernardes, onde irei Vestir-me para desafiá-los, naquele momento, não a estarem presentes, dado que já lá estavam, mas para partilharmos o pensamento, não entregues a nós próprios, dado que depressa descobriríamos a inanidade e a vaidade da existência, num mundo em que Orlando acredita que «ainda há livros e versos / a marginar a solidão da tua ausência / ainda há estragos, inquietações / a roer a pele dos deserdados…», memorial poético a recordar o eterno Fernando Canedo, a viver numa outra Galáxia.
Foi de Orlando Ferreira Barros, a viver feliz em Viana do Castelo, que naquela maravilhosa tarde de sábado, a pedido da Velha Messalina, também resolvemos sentarmo-nos naquelas cadeiras, até ali vazias, da Sala Couto Viana chique, coroada de odores dulcificados, pedindo num murmúrio arrastado de brandura treinada nos dias anteriores (os que antecederam aquele acto solene), uma maçã “porta da loja”, fruta portuguesíssima, rural e valente, desdenhadora de sulfatagens e químicas envenenadoras, descascada e cozida. Foi assim que nos sentimos naquele dia.
É evidente que, nesse mesmo dia, não aceitamos aquele desafio para explicar os conteúdos das primeiras quatro «Escritas desencarceradas», encarceradas, circunstancialmente, numa artesanal caixinha, à espera de outras tantas escritas desencarceradas, até preencherem o espaço vazio, como vazia será a nossa vida sem os livros e a memória daqueles que, apesar de viverem noutras Galáxias, foram ali recordados pelo bom amigo e excelso escritor, Orlando Ferreira Barros: sua mãe Edmeia, onde «todo o tempo é de amor maternal / desde o cintilar do dia / até à chegada do temporal…»; Mestre Pinto, «Meu irmão, mestre, meu amigo, / bravejando com a emoção / dos inquietos e dos convictos…»; Eduardo Freitas (Para tão longo esplendor tão curta vida), «Este mundo é tão grande, Eduardo, / mas não sabe / das ondas do mar…»; Fernando Canedo, onde «ainda há o teu paciente deslizar / a pé, pelos ingratos atalhos do saber…»; Lucilo Valdez, onde «sozinho no escuro, sem medo / como herói desgarrado, aguerrido, / que se ergue do mortal degredo / renovado e moço…»; Pedro Fins, «Se eu morrer antes de ti, / Pedro, / vou sentir na imperfeição da tua ausência / o outono a escurecer...»; A Taberna da Espanhola, na rua do Vilarinho, onde se soltam «eferreás alcoólicos, embriagados / da boca da estudantada, vozearia sem nexo, / um casal de jovens levanta-se, adormentado, / vai-se aliviar no único wc, tipo unissexo…»; e, finalmente, quem não se lembra do Toca Tone, sob a inspiração poética de Eugénio Monteverde, «Esse castiço vianês? / Com concertina-trombone / Fez-nos vibrar tanta vez / A concertina tão velhinha / Já sem rés, fás, mis, dós / Dava o pouco que tinha / Mas ele ajudava com a voz…». De facto, Orlando Ferreira Barros faz-nos sentir que “continuamos vivos, aqui ou numa Galáxia”.
E mais não nos apraz dizer, sem que antes vos apele ao contraditório do delito de Octávio Bernardes «quando o brado rasgou o silêncio duro da sala de aula, sentimo-nos atravessados por um terror sísmico. Nas carteiras, mais cagados que poleiro de galinhas, percebemos o lobo a farejar a vítima»… Não, Orlando Ferreira Barros nunca teve necessidade de se pirar daqui, porque aqui pensa, escreve e vive feliz.
        NOTA MÁXIMA! 

Saturday, November 08, 2014

«O Tempo Morto é um Bom Lugar» com Manuel Jorge Marmelo!...

«…Ainda que não me veja muito conveniente remexer neste assunto, acabei por perder algum do meu precioso tempo morto a cogitar a possibilidade de algum dos meus agiotas ser impiedoso e cruel ao ponto de ter assassinado Soraya.»

Manuel Jorge Marmelo

À conversa com… é uma iniciativa da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, que visa promover, em torno do livro, o diálogo e a troca de conhecimentos com escritores contemporâneos, proporcionando a oportunidade de conviver de perto com os autores e a sua obra. Com a mesma iniciativa, que embrionariamente remonta a Outubro de 2009, cujo primeiro convidado foi o escritor angolano Luandino Vieira, pretende-se que seja um espaço de incentivo à leitura, de divulgação das obras dos autores da actualidade, de promoção da cultura e do conhecimento, e, sobretudo, de interacção entre o público leitor e os escritores.
Na última sexta-feira, 31 de Outubro, dia em que se prestou uma singela homenagem ao Professor José Bento (1951-2014), membro do Clube de Leitura da mesma Biblioteca Municipal, e que nos deixou órfãos no corrente ano – «À volta da mesa seremos sempre dezoito», numa alusão clara à memória de José Bento, como um dos dezoito membros do Clube de Leitura, num texto escrito e lido por Carlos Ponte: (…) E quando a fome e o cansaço nos vencerem, sentámo-nos à mesa. E no fim, os dezoito, porque à volta da mesa seremos sempre dezoito, de pé, com o melhor vinho ribeiro das fráguas galegas, brindaremos à amizade que nos une, à vida e aos livros –, o convidado foi o escritor Manuel Jorge Marmelo, nascido na cidade do Porto em 1971. Jornalista deste 1989, estreou-se na literatura em 1996, com o livro «O Homem Que Julgou Morrer de Amor». Com mais de vinte títulos publicados, a sua criatividade literária passa pelos romances, crónicas, livros infantis e contos. Conquistou, em 2005, o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco com o livro «O Silêncio de um Homem Só» e, no corrente ano (2014), foi galardoado com Prémio Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa, pelo romance «Uma Mentira Mil Vezes Repetida». Manuel Jorge Marmelo tem participado em várias publicações e antologias, e, desde Julho de 2001, o seu nome consta do “Dicionário de Personalidades Portuenses do Século XX”, da Porto Editora, sendo o mais jovem dos nomes biografados.


Naquele dia, o mote para dois dedos de conversa foi o seu mais recente romance «O Tempo Morto é Um Bom Lugar» onde, segundo a crítica, se misturam vários géneros literários, desde o policial à autobiografia, rejeitando-se uma ligação umbilical a qualquer um deles. É um livro feito de pontas soltas, dividido em três partes, onde o leitor tem o papel decisivo de deslindar os mistérios que surgem nas suas páginas e que são, felizmente, muitos.
Sem nos enredarmos em grandes considerações crítico-literárias, dado que não é esse o nosso propósito, apenas diremos que o trama deste extraordinário livro gira à volta de Herculano Vermelho, um jornalista desempregado que um dia acorda ao lado do cadáver de Soraya, «uma inquietação com pernas» e estrela televisiva de um qualquer reality show, de quem aceitou tornar-se ghost writer para escrever uma autobiografia. Herculano não tem memória de nada, mas entrega-se à polícia como se a ida para a prisão fosse um desígnio pessoal a cumprir, vivendo o tempo morto da prisão com uma grande dose de alegria, num lugar onde não há contas para pagar, não existem apresentações periódicas obrigatórias no centro de emprego e não se sentem pressões de qualquer espécie de uma ex-mulher que, ainda assim, sempre mostrou ter paciência de santa. É ele – será mesmo? – que nos conta, na primeira pessoa, o primeiro andamento do livro: Antes de ter ficado desempregado não costumava lembrar-me do que acontecia nos sonhos, ou então, é o mais certo, tinha outras coisas em que pensar e acabava por esquecê-los sem lhes atribuir qualquer importância (p. 45) …Egoísta e indiferente a quase tudo, assalta-me frequentemente a ideia, agora não tão absurda quanto isso, de que posso transformar-me – enquanto envelheço, ou quando sair da prisão, que não há-de durar para sempre – numa daquelas pessoas que morrem solitárias e rodeadas apenas pelo silêncio dos seus gatos (p. 49). É na prisão que a sua avaliação psiquiátrica é inconclusiva e que conclui que o país está endividado e dependente de ajuda externa para pagar as quantias absurdas de fundos públicos, transferidos para os bolsos de empresas, consórcios e fundações assessoradas por advogados e economistas, messias que nos garantiam estar a agir no melhor interesse dos cidadãos. É este o recluso que se sente incapaz de reconstruir o fio das conversas com a Soraya, numa dicotomia entre a memória e a imaginação, com noites de atormentadas insónias, impressas a giz no quadro negro de lousa ou a esferográfica Bic: Quando durmo mal, o que acontece quase sempre, desperto muito cedo no silêncio duro da minha cela e fico a lembrar-me da crioulinha (p. 65). Um paralelo entre o desempregado e o presidiário? – uma interrogação que colocamos, a pretexto de eventuais detectáveis alegorias filosóficas.


A segunda parte é a surpreendente autobiografia de Soraya, um relato fantasmagórico de um narrador não identificado, que nos conta a breve história de ascensão e queda de uma linda mulher que, por detrás de um belo corpinho, esconde muito mais do que a aparente futilidade: Todas as minhas recordações de infância são imprecisas. Nelas a terra tem um tom entre o castanho e o cinzento, áspero, que se infiltra e contamina as memórias que me restam. Tudo o que me lembro está submerso no sépia suave daquele pó de ilha nua (p. 140); Estar na televisão assemelha-se a mudar de país (p. 143); Agora que penso nisso, é irónico que a Maria tenha sido a única a quem a escola serviu para alguma coisa. Tirou o curso de advogada e tem um emprego num banco (p. 147) – sentido estético de uma ironia refinada, que Manuel Jorge Marmelo nos leva a uma escrita criativa da mais apurada mestria, onde, no dizer de Ana Dias Ferreira, se pressentem jogos literários e artifícios que permitem elevar tudo acima da mundanidade: Máscara por cima de máscara, até à terceira parte em que se desmonta tudo, Manuel Jorge Marmelo constrói um romance que dinamita a noção de verdade e que confirma: nem ele é um fantasma sem voz própria, nem o prémio atribuído nas Correntes d'Escritas foi uma aparição.
De facto, a terceira parte pertence a João António Abelha, um jornalista veterano que, um ano depois da morte de Soraya e com as montras repletas de exemplares de “O Segredo de Soraya”, decide investigar por conta própria quem terá sido o autor da fotografia da capa e, em última instância, quem será, afinal, o autor do próprio livro: A seguir, e sem que isso tenha surpreendido minimamente João António Abelha, Soraya e Naninha fundiram-se num só corpo no momento em que iam cruzar-se no centro do ringue, dando origem a uma única mulher muito bela e doce, um pouco tímida, que vestia um fato de banho quase infantil, preto e estampado com cerejas (p. 274-275). E por aqui nos ficamos… O resto, é com os necessários e/ou hipotéticos leitores de Manuel Jorge Marmelo. Um autor que se recomenda.

NOTA MÁXIMA!