Saturday, June 27, 2015

A questão pertinente da existência de Deus em Feuerbach!...

«O que até agora se afirmou em geral sobre a relação do sujeito com o objecto, mesmo em relação a objectos sensíveis, é “especialmente” válido no caso da relação do sujeito com o “objecto religioso”».

Ludwig Feuerbach
(In, A Essência do Cristianismo. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian)

Começando por exteriorizar o “objecto sensível”, Feuerbach acaba por colocar o “objecto religioso” como um objecto intrínseco ao próprio homem, ou seja, dentro dele. Por isso, Deus aparece mais estritamente ligado ao homem do que o corpo à alma. Enquanto o “objecto sensível” é em si indiferente, porque independente da convicção, da faculdade de julgar; o “objecto da religião” é um objecto eleito, sendo que pressupõe um juízo crítico. Daí se depreender que o objecto do sujeito não é mais do que a essência objectividade do próprio sujeito: “Tal como o homem é objecto para si, assim Deus é objecto para ele; tal como pensa, tal como sente, assim é o seu Deus. Tal o valor que o homem tem, assim o valor – e não mais – que o seu Deus tem” (Feuerbach, 1994: 22). Numa contraposição ao princípio supremo de Hegel, quando este afirmou o saber do homem sobre Deus é o saber de Deus sobre si mesmo, Feuerbach postula o saber do homem sobre Deus como o saber do homem sobre si mesmo, ou por outras palavras: A consciência de Deus é a consciência de si do homem, o conhecimento de Deus o conhecimento de si do homem. Segundo o mesmo filósofo, “o que para o homem é Deus, isso é o seu espírito, a sua alma, e o que para o homem é o seu espírito, a sua alma, o seu coração, isso é o seu Deus”. Estamos, assim, perante o Deus interior revelado, o “si-mesmo” do homem expresso. Por outro lado, a religião revela-se no desvendamento festivo dos tesouros escondidos do homem e/ou na confissão dos pensamentos mais íntimos do homem, ou seja, naquilo que Feuerbach diz ser a proclamação pública dos seus segredos de amor. Para ele, o homem começa por lançar a sua essência para fora de si, antes de a encontrar em si. Por isso, se, na religião, a consciência de Deus é referida como a consciência de si do homem, o homem religioso, ao ter consciência de Deus acaba por ter consciência de si, da sua essência: “Para eliminar esta incompreensão, é preferível dizer: a religião é o primeiro, mas indirecto, conhecimento de si do homem. É por isso que em toda a parte, tanto na história da Humanidade, como na história do indivíduo, a religião precede a filosofia” (Feuerbach, 1994: 23). Esse preceder da religião reside, precisamente, no facto de que aquilo que nas primeiras religiões foi tido como objectivo, é hoje reconhecido como subjectivo.


A religião precedente, a do Deus objectivado, viria a ser considerada pela religião posterior como idólatra, dado que o homem adorou a sua própria essência, ou seja, segundo Feuerbach, o homem objectivou-se mas não reconheceu o objecto como a sua essência. Contudo, cada religião posterior, ao considerar as suas irmãs mais velhas como idólatras, acaba por se subtrair a si mesma da essência universal, e, desta forma, usufruir da condição necessária para vir a ser religião. O filósofo alemão chama a isto de progresso na religião, um conhecimento de si mais profundo. Nesta circunstância a religião posterior, por se elevar acima do conteúdo das anteriores, atribui às mesmas (precedentes) o que é a culpa da religião em geral e dado imaginar que o seu objecto, o seu conteúdo, é sobre-humano: “Mas o pensador para quem a religião é objecto, o que a religião não pode ser para si mesma, descobre a essência da religião que para ele está oculta” (Feuerbach, 1994: 24). O mesmo filósofo alemão procura assim demonstrar que esta oposição do divino e do homem é ilusória. O objecto e conteúdo da religião cristã acabam por ser inteiramente humanos e a essência divina é a essência do homem purificada, porque liberta das limitações do homem individual. Daí se concluir que todas as determinações da essência divina são, invariavelmente, determinações do próprio homem.
Tendo em conta que uma essência sem determinações é uma essência nula, porque não-objectiva, o homem ao afastar de Deus todas as determinações, acaba por “imprimir” em Deus um ser negativo. Para Feuerbach, a negação do sujeito é considerada uma irreligiosidade, até mesmo ateísmo: “Para o homem verdadeiramente religioso, Deus não é um ser desprovido de determinações, porque é para ele um ser certo, real. A ausência de determinações – e a incognoscibilidade de Deus, que lhe é idêntica – é, portanto, apenas um fruto dos tempos recentes, um produto da incredulidade moderna” (Feuerbach, 1994: 25). O homem desculpa-se com a incognoscibilidade de Deus, pelo facto de, circunstancialmente, se ter perdido no mundo. Nega Deus pela acção, mas não teoricamente. O mundo ao absorver todos os seus sentidos e pensamento, o homem deixa de discutir a existência de Deus, deixando-a subsistir. Feuerbach afirma que esta existência não afecta nem incomoda o homem, por se tratar apenas de uma existência negativa, uma existência sem existência, uma existência contraditória – “um ser que, pelos seus efeitos, não se pode distinguir do não-ser” (Feuerbach, 1994: 25). O homem, ao negar determinados predicados positivos da essência divina, e apesar de possuir para si uma aparência de religião – para não ser reconhecida como negação –, acaba por negar a própria religião. Esta atitude é denominada por Feuerbach como um subtil e astucioso ateísmo. Para o mesmo filósofo alemão, fazer de Deus um ser finito, por pretensa vergonha religiosa, reflecte apenas o desejo irreligioso, ou seja, nada querer saber acerca de Deus, tirando-o dos sentidos – Quem tem vergonha de ser finito, tem vergonha de existir [50]. Só quando o homem perde o gosto pela religião é que a existência de Deus se torna numa existência insípida: “Uma existência em geral, uma existência sem qualidade, é uma existência sem gosto, insípida. Ora em Deus não existe mais do que na religião” (Feuerbach, 1994: 26).
Outro factor preponderante para a denominada “destruição da paz da religião”, segundo Feuerbach, reside na distinção – ainda que infundada e inconsciente – entre aquilo que Deus é em si e aquilo que é para o homem, concedendo este que os predicados da essência divina sejam determinações finitas, ou seja, determinações do próprio homem, alegando-se, ao mesmo tempo, que é necessário formar certas representações acerca de Deus: “Não posso de modo algum saber se Deus em si ou para si é algo de diferente do que é para mim; tal como é para mim, assim é tudo para mim. Porque é justamente nesses predicados nos quais ele é para mim que reside, para mim, o [52] seu ser-em-si-mesmo, a sua própria essência; ele é para mim tal como poderá ser sempre para mim” (Feuerbach, 1994: 26-27). Assim, o homem religioso, ao não conhecer outra relação senão a relação dele com o que Deus é – pois Deus é para ele o que pode ser para o homem em geral –, acaba por se elevar acima de si mesmo, sendo que esta elevação não passa de uma ilusão.
           Boa reflexão e até para a semana!

Wednesday, June 17, 2015

Domingos da Calçada edita contos e crónicas do Vale do Neiva!...

«Enquanto esteve em Coimbra, fosse porque se tivesse embrenhado totalmente na conclusão do curso, fosse porque se sentiu comodamente amparado pelos costados da velha família que lhe esmaltavam a origem fidalga mais a ascendência castrense, desvalorizou a obrigação de se apresentar às inspecções militares e foi considerado faltoso.»

Domingos da Calçada

Com esta pequena citação, atrevemo-nos a dar-lhe o cunho pragmático do significado da virtude, assente na força, poder, poder de uma coisa, eficácia. «MUITOS PECADOS – POUCAS VIRTUDES», contos e crónicas do Vale do Neiva, virtudes e sabedoria do grande memorialista DOMINGOS DA CALÇADA, arquitecto da sabedoria, da palavra e do destino das gentes do Vale do Neiva, este HOMEM DO POVO onde o factor criativo se espelha na realidade que não precisa de ser inventada, porque, no dizer do seu editor e nosso particular amigo Fernando Pinheiro, «ela vive e permanece nas páginas das obras de Domingos da Calçada, e a sua representação simbólica permite ao leitor um encontro emocionante com a experiência histórica de um povo que contra ventos e marés sofreu a canga da exploração, combateu as injustiças e lutou pelo seu progresso». No dia 31 de Maio (Domingo), lá fomos até Durrães, num amplexo sincero a Tregosa, porque agora irmanada na “União de Freguesias”, para apresentarmos mais uma obra deste grande escritor que utiliza uma linguagem pura, peculiar, plena rusticidade e de termos caídos em desuso, imprimindo-lhe um estilo quase camiliano, no que toca à «violenta intromissão da consciência narradora no plano da expressão», no dizer de Eduardo Lourenço.


E começaremos precisamente pela Virtude, enquanto hábito que se torna possível, à boa maneira aristotélica, por haver previamente nela uma potencialidade ou capacidade de ser de um modo determinado. De facto, não basta contentarmo-nos com o dizer que a virtude é hábito ou modo de ser, antes é preciso dizer também de forma específica qual é esta maneira de ser em Domingos da Calçada, carácter específico do ser humano maravilhoso que ele é, bem próprio e intransferível, no sentido lato dos actos necessários à virtude, aquilo que faz que cada coisa seja o que é, sem máscaras ou artefactos similares, dado que, circunstancialmente, as máscaras retiram racionalidade à virtude.
Quanto aos pecados, aspectos catódicos da razão, inerentes à força abstractiva da inteligência humana, revelam-se através das funções da consciência, razão e memória. São esses os pecados de Domingos da Calçada: consciência, razão e memória. Acrescentaríamos, a inteligência auxiliada pelos sentidos, faculdades que apresentam o objecto que, abstraído das propriedades materiais e concretas, se unem à inteligência, derivando da natureza do ente. Daí, ser pacífica a dualidade impressa por Domingos da Calçada, entre os “muitos pecados e poucas virtudes”, ou vice-versa.
É evidente que não iremos aqui esmiuçar ou desvelar conteúdos deste magnífico livro de contos e crónicas do Vale do Neiva, pois se eventualmente o fizéssemos, face à subjectividade da nossa apreciação (sim, uma apreciação é sempre subjectiva), isso não seria bom nem para o autor nem para o editor, e, sobretudo, para os leitores. Compete-nos apenas aguçar o apetite dos potenciais leitores (compradores), glosando a caracterização das personagens, estados psíquicos, espaços temporais e comportamentais; a genuína expressão lexical do autor e a facilidade com que nos prende a sua criatividade literária.
Por este «Muitos Pecados – Poucas Virtudes» perpassam Regedores, daqueles que, ao tempo, «costumava dizer-se, consoante o padrão económico do meio, que era genericamente pobre, que quem tivesse um conto de réis a juros podia usar gravata e andar de costas direitas toda a semana, sem precisar de vergar a espinha a manejar a sachola»; criados de servir, materializados no Alfredo da Torre, «coitado. Poucos criados de servir foram mais tosados e explorados do que ele» e na Velhinha de Rosendo: «Falou muito, a velhinha, no pouco tempo de que podíamos dispor»; as histórias contadas, por um pedreiro de Durrães, chamado Adelino Fernandes do Campo, mais conhecido por Adelino Gateiras, um bom conversador que nos derradeiros anos de vida foi deixando para a posteridade várias histórias e casos, quer da sua própria vivência, quer do seu conhecimento pessoal, evitando com a sua verve que caíssem no vazadouro do esquecimento, realçando a do caso do “barrelo” do Tio Lãos de Santa Lucrécia: «Foi famosa a “casa das trancas” duma quinta de Cossourado, que serviu de exemplo ou modelo a várias outras de freguesias ao redor»; o Bento Peliqueiro, negociante de peles, «depois de mais duma semana por terras desconhecidas, sempre a caminhar, a passar fome e a cansar as pernas. O traste espalhou a falsa notícia da sua morte…»; o Ti’Joaquim e o “relaxe da décima”, permitido e auscultado pela Rosa da Fontainha, curadora de maleitas; a compra da espingarda por Antonces, «presumido e obcecado pela usura, que praticava sem o mínimo engulho moral, colocava o seu exclusivo interesse e imagem no vértice de uma pirâmide, cuja base esmagava os pobres e os simples…», ao Zé Sambento.


Por este magnífico livro de Domingos da Calçada, perpassam ainda gente incrível como o Zé da Beata, aquela pessoa que, segundo Domingos da Calçada, «nas suas bizarras conjecturas, se considerou como o mais importante exemplar da espécie humana que jamais existiu à face da terra…»; o professor Domingos Gomes e a pupila D. Amélia, «mulher enigmática, que punha especial cuidado no aspecto físico, sobretudo com o vestuário que lhe fazia sobressair as bem delineadas formações do corpo»; o Moisés, filho dum artista que foi desenhador e pintor de alta sensibilidade e reconhecido mérito, mas que «não encarreirou na esteira das tintas e do craião, que preenchiam as horas e o mundo intelectual do seu progenitor»; o Pato Velho e o Abade Marrancos (assim alcunhado pelas línguas afiadas em lanceta dos velhos capareirenses), dois feirantes que «entachavam tamancos para vender nas feiras e à porta, mas o Pato dedicava-se também à compra de cereais, sobretudo milho, com que chegava, numa só feira, a carregar em pleno um carro puxado a cavalos»; a Virgínia, aquela que «tinha perdido o homem dois anos e meio depois do casamento»; o doutor que trocava por outras a sua prendada senhora, como faziam os antigos reis, nobres e fidalgos; e, o Francelino da Mata, aquele cuja «inquietação dominava-o à laia de remorso…».
O acto perfeito da criatividade memorialista e literária de Domingos da Calçada, evidencia-se também na composição dos enredos, harmonizada pelo bem doseado antagonismo do pecado e da virtude. Nada como um bom enredo para podermos afirmar, com justeza, à boa maneira aristotélica, «que uma tragédia é diferente ou igual: é igual quando tem o mesmo nó e desenlace. Mas muitos que estruturam bem o nó elaboram mal o desenlace» (Poética, 1456a: 5-10). Ao contrário das preocupações educacionais de Aristóteles, Domingos da Calçada, é mestre em harmonizar o nó e o desenlace. São bem exemplo disso: Padres, Padrinhos e Padrecas; O Ladrão das Cabaças; O Inocente; O Rapinanço; e O Moreno. Tudo está em «Muitos Pecados – Poucas Virtudes», através das palavras, emoções, histórias e espaços colectivos, desejos, ideais, conflito de gerações, rectidão e frontalidade, inocências enganadoras, prosperidade e bem-estar, aventuras desventuradas pela ambição e a ganância. Tudo numa escrita escorreita, escorreitamente perfeita.          
         NOTA MÁXIMA!