Monday, July 11, 2016

Isabel e Guilherme Valadão: Angola revisitada em escrita de qualidade!...

«Ao cair da noite, os sons vindos da floresta eram mais vivos e tornaram-se quase ensurdecedores nalguns pontos do caminho. E conseguia distinguir alguns deles, como o latido dos cães e o uivar quase constante das hienas e, estranhamente, os de um batuque distante, rompendo a noite…»

Guilherme Valadão

Toda a gente sabe (ou devia saber) que Angola representa para nós um alicerce saudável na construção da nossa personalidade e sensibilidade inteligível, sem equívoco dos sentidos. E é nesse sentido (com os devidos pedidos de desculpa para a redundância) que nos aventuramos na leitura compulsiva, em tudo o que diga respeito à Angola da nossa infância e juventude, espaço temporal de gratas memórias, onde fizemos parte da paisagem; subimos às mangueiras, cajueiros, abacateiros; vimos pilar a mandioca, colher o café, chorar cantando ao som do batuque, porque acreditavam na vida para além da morte; talhar o marfim, pau-rosa e pau-preto (…). Aí nasceram nossos irmãos. Vimo-los crescer e com eles crescemos. Essa é a mística e a descompressão que ora nos vem pela leitura.
Hoje falar-vos-emos de dois escritores, que recomendamos vivamente, porque se nos oferece a condição objectiva para a dedução transcendental: Isabel Valadão nasceu na pequena vila de Paço de Arcos (Lisboa) mas, em 1951, com a idade de seis anos, foi para Angola, aí tendo vivido até 1975, pouco antes deste país se tornar independente. Acompanhando os pais no seu périplo angolano, passou por diversas regiões, desde Lobito a Malange, até se fixarem em Luanda, cidade onde viveu a adolescência, casou e onde nasceram as suas duas filhas – Margarida, nascida em 1968 e Teresa, em 1974. Durante alguns anos, foi analista química dos Serviços de Geologia e Minas em Luanda e secretária da revista angolana Notícias. Regressou a Portugal em 1976, depois de uma breve passagem pela África do Sul, onde a sua família se refugiou na sequência dos graves acontecimentos que antecederam a independência de Angola. Viveu em Macau, regressando definitivamente a Portugal em 1986. Cascais foi o local escolhido para se fixar e aí viveu durante mais de trinta anos. Licenciou-se em História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Em privado, dedicou-se à investigação na área da Defesa e Conservação do Património, paralelamente à conservação e restauro de pintura. Como faz questão de dizer, vive na região saloia de Mafra, na companhia do marido (Guilherme Valadão), nove gatos e uma doce golden retriever chamada Daisy. Publicou, sob a chancela da Bertrand: Loanda – Escravas, Donas e Senhoras (2011); A Sombra do Imbondeiro – Estórias e Memórias de África (2012); Angola – As Ricas-Donas (2014).


Guilherme Valadão nasceu em Angola em 1940, por lá fez a sua formação escolar, passando pelo Liceu Salvador Corrêa de Sá, em Luanda, e pelo Colégio dos Irmãos Maristas, em Silva Porto. Fez a sua vida profissional a partir de Luanda, viajando em trabalho por todo o território e por vários países da África Austral, durante vários anos. Em 1966 casou com a Isabel de quem teve as duas filhas. Em 1975, pouco antes da Independência daquele território, e na iminência de ser preso pelo MPLA devido à sua proximidade pessoal a Joaquim Pinto de Andrade, refugiou-se na África do Sul onde foi acolhido pela Philips como auditor interno. Em 1977 chegou a Portugal com a família, onde se estabeleceu como mediador de negócios imobiliários. Passados dois anos, encerrou a empresa e foi viver para Macau os dez anos seguintes, estabelecendo-se com negócios ligados a obras públicas, representações e comércio. E nessa actividade viria a conhecer algumas regiões da China, incluindo Hong Kong, Cantão e Xangai, entre outras. Publicou, também sob a chancela da Bertrand, Era Uma Vez em Angola (2015), uma gota de água do que tem escrito ao longo dos últimos doze anos, entre prosa e poesia, e guardado. Este livro tem o mérito naquilo que a nossa Angola empresta a todos os seus filhos no esplendor da sua História, no feitiço das suas gentes e no encanto da sua geografia – conta a pequena odisseia de um miúdo zangado com o mundo, que atravessa o território em todos os sentidos, e em muitos povos se integra como qualquer outra criança a viver nas mesmas circunstâncias. Tal como um dia nos confidenciou Guilherme Valadão: «Ao longo das mais de setecentas páginas do livro completo, que vai de 1912 até ao ano da Independência, em 1974, conto a minha história e a da minha família até ao dia que fui obrigado a abandonar a terra onde nasci. Para trás ficavam as memórias e nos cemitérios os ascendentes dessa criança problemática, que se fez homem, por lá viveu os anos da guerra e os conflitos próprios da história dos povos. Por razões editoriais a parte publicada com este livro é apenas dos primeiros três ou quatro capítulos do manuscrito…».
Que dizer, então, da escrita de Isabel e Guilherme Valadão? Tão simples como isto: Literatura com alma. Forma nostálgica de respeito, neutralidade e, sobretudo, honestidade intelectual. É um sentir da africanidade, envolto por estórias e viagens enfatizadas pelo misterioso e maravilhoso, sem dissimulações ou leituras evasivas, feitas pelo ressoar dos tambores (batuques), dos quissanjes ou marimbas; manhãs de intenso nevoeiro na partida para o degredo; gente ruidosa à chegada, em subúrbios da cidade baixa, qual bairro “Ingombota” das quintandeiras, oleiros, pedreiros, sapateiros, latoeiros, contrastando com o cenário do bairro dos Coqueiros, no sopé da Fortaleza do Morro, que de Jesuítas se vestia; dos purgantes para limpeza dos intestinos; os acontecimentos automobilísticos; os lugares emblemáticos dessa Luanda das acácias em flor: a Livraria Lello, as pastelarias Paris, Versailles e Arcádia, os gelados do Baleizão, etc., etc… Conhecê-los será a próxima etapa de releitura, de estórias tão próximas das nossas, que, por certo, se fundirão com a história da nossa Angola e das suas gentes. Nem que seja através do «Era uma vez...», decalcado pelo sentir e pelo cheiro, vida sentimental, busca da felicidade, entre fidalgos, traficantes, degredados, escravos e “libertos”, donas e senhoras, sem esquecer o sagrado imbondeiro, árvore da sabedoria e vida, em paraíso onde nos era permitido proibir o proibido. De norte a sul do território, olhando para trás, escutando ruídos e vivendo, sentindo. Conversas intermináveis; “mata-bicho” e refeições condimentadas pelo charuto aceso e saboreado; abrindo caminhos pelas picadas em direcção às sanzalas, temendo cipaios; viagens mágicas, por sítios onde as águas dos rios e oceanos eram mansas e cristalinas, e o “céu era de um azul profundo e, lá ao longe, a uma grande distância daquele ponto, era já da cor do fogo porque o sol mergulhava naquele oceano distante”. Contrastes e memórias aguareladas, marcadamente saudáveis: «O meu filho nasceu hoje…». Terra onde tudo pegava de estaca!   
Nestes livros, lidos e relidos, será exigível os autógrafos, porque gostamos. A arte e a leitura pelo gosto, sem fretes, será sempre a única forma, nossa, de trocarmos horas de tédio pela alegria de permanecermos neste planeta. Esse será sempre o nosso “kukala kiambote ó kíua” e a única forma de nos libertarmos deste “psoríaco” obscurantismo, agarrando na palma das mãos a cor do fogo, de um sol diferente, tropicalmente diferente.
        NOTA MÁXIMA!

2 comments:

Guilherme Valadão said...

Meu caro Porfírio Silva

Não venho para lhe agradecer nada. Não teria palavras para o fazer, as adequadas ao momento que criou com a sua crítica, num recato que, decerto, me perdoará. Nenhuma estaria à altura das suas palavras porque nelas eleva os meus méritos de escritor a um nível que estou muito longe de atingir. Mas venho, decididamente, falar dela, porque nela me revejo na africanidade intrínseca das memórias que trago da terra onde nasci, da Angola dos meus pais, de quem herdei o sonho de um futuro que não chegou ao fim. Uma parte dele morreu. A outra viverá para sempre no meu coração. É dela que quero escrever, dessa memória viva que me alimenta o espírito, a memória dos homens que fizeram daquela terra o berço de muitas gerações e as campas dos seus maiores.

Sobre isso escreverei até ao fim.

Escreverei até que me doa a alma, escreverei sempre. Contarei a história do homem branco, da mulher branca, da criança branca, irmãos de sangue, mais negros do que o mais negro filho de África, tão genuínos na sua africanidade como o leito de um Quanza que oferece as suas águas a um oceano mestiço, grandioso, sem fim - e nele buscam o infinito, a enseada encantada de Kianda. Sim, falarei dos meus irmãos, de todos eles – brancos e negros, e de uma terra generosa onde vivíamos sem nunca sabermos da cor da pele de cada um. Falarei de um João Botelho que ainda lá vive, jovem e sonhador, em busca do futuro na aventura da vida, entre a guerra e a paz, em busca da harmonia, na esperança de uma terra livre, na memória de gente que por ela lutou, dela foi guerreiro, herói e mártir e nela jaz, tantos dela, em tumba rasa.

Um abraço grande pela generosidade das suas palavras.

Unknown said...

Brutal.
Ja li "A sonbra do imbondeuro" e nao descanso enquanto nao ler todos os outros q me faltam.
Parabens